Os bons morrem jovem…

A dor da perda é algo massacrante, um vazio enorme dentro do peito como o buraco negro

A dor da perda é algo massacrante, um vazio enorme dentro do peito como o buraco negro

Perdemos um amigo que vi crescer ontem. Tinha 33 anos e se foi assim, como disse certa vez o arquiteto Oscar Niemeyer, num sopro. Ele estava hospitalizado há uma semana, duas talvez, não sei bem direito, diagnosticado com pneumonia, alguma coisa do tipo e a medicina moderna, com toda a sua evolução e avanço, não conseguiu salvá-lo. Quando soube da notícia tentei segurar as lágrimas, ser durão diante da família, mas caí em prantos quando estava sozinho, quando ninguém estava vendo. Senti-me o Cristo no Getsêmani. Às vezes a vida é assim, meu caro, injusta e cruel e eu, que não tenho crença, não acredito em deus, não acredito em nada, me lembrei daquela frase do Nelson Rodrigues quando perguntado sobre a existência do onipresente.

“Eu não explico o inexplicável, meu caro Otto”, disse ele, mãos dramáticas no peito, num programa de televisão, ao grande jornalista e intelectual Otto Lara Resende.

A dor da perda é algo massacrante. Um vazio enorme dentro do peito, um buraco negro em nossa alma, enfim, em nosso ser que nunca irá se fechar. E a incompreensão diante daquilo que não entendemos ou não queremos entender só aumenta esse fosso entre a razão e a emoção. Como entender a morte? Como superar a perda? Sim, porque amanhã vamos acordar e ele não estará mais lá. E a pergunta que faço sem pestanejar, em meio a um turbilhão de revolta interior é: onde está deus nisso tudo? E eu, um ateu convicto e solitário em minha convicção digo obtusamente, não sei.

Por isso que o desespero é grande, a angústia uma fenda que nunca irá se fechar. E quando escrevo isso Lágrimassó penso na dor da família do meu amigo que foi embora cedo demais. “É tão estranho/Os bons morrem jovem”, cantou certa vez Renato Russo na melancólica Love in the aftenoon. “Uma vida inteira que podia ter sido e que não foi”, escreveu o grande poeta Manuel Bandeira em Pneumatoráx.

Bem, ele era um jovem cheio de energia, bonito, alegre, com uma vida inteira pela frente, sonhos a realizar e agora tudo se resumirá às boas e saudosas lembranças em nossa memória que ficarão e que elas sejam eternas.

Hoje acordei mais triste, machucado, com um sentimento cinza dentro de mim com esse céu plúmbeo opressor sob a minha cabeça que só me faz sentir menor do que já sou. E nós somos assim, insignificante diante de cenas tristes da vida como essa. “Por que os bons morrem cedo?”, reverbera em minha cabeça a pergunta do bardo brasiliense naquela canção triste. Bom, se eu soubesse rezar faria uma oração para espantar toda a dor que guardo dentro do meu peito agora e rezaria em homenagem à alma de meu amigo que foi embora cedo demais. Mas como não sei nem falar o Pai Nosso e perdi a fé na metafísica, leio um verso de Vinícius de Moraes, cujas linhas líricas nesse momento, afagam minha dor que parece ser infinita. Por que me sinto como aquele personagem da canção Svefn-G-Englar do Sigur Rós, ou seja, caindo em falso…

“Não há muito o que dizer/(…) Um verso, talvez, de amor/Uma prece por quem se vai/(…) Pois para isso fomos feitos/(…) Para ver a face da morte/(…) Hoje a noite é jovem: da morte, apenas nascemos, imensamente”, diz o poetinha em Poema de Natal.

E o nosso Natal este ano será triste e de uma melancolia perturbadora… Às vezes me sinto assim com vontade de não existir… O que fazer quando o chão que pisamos vai embora?

O arquiteto Oscar Niemeyer é que tinha razão… A vida é um sopro!

* Este texto foi escrito ao som de: () (Sigur Rós – 2002)
Sigur Rós 2

Tatuagem (2013)

Estreia de Hilton Lacerda na direção, o filme discute a liberdade a partir de romance gay

Estreia de Hilton Lacerda na direção, o filme discute a liberdade a partir de romance gay

O nome Hilton Lacerda foi a única motivação que me levou ao cinema para ver Tatuagem outro dia, a estreia do conceituado e respeitado roteirista pernambucano como cineasta. Havia um burburinho de que se tratava de um filme gay polêmico e não sei o quê, mas nem dei muita pelota para o que as pessoas diziam e lá fui. Bom, gosto da visão decadente que o cara tem do ser humano impregnada em filmes como Amarelo manga e Baixio das bestas, esse último, em minha opinião, sua melhor história.

Confesso que assustei com a abordagem sobre liberdade em Tatuagem, mas depois de um bate papo interessante com o roteirista e agora diretor por telefone sobre o projeto, admito que passei a ver o filme com outros olhos. Ainda estou digerindo tudo em minha cabeça e se passo por essa fase de processamento é porque sou um sujeito muito conservador. Isso é uma pobreza de espírito ululante, mas fazer o quê se eu sou assim.

Gestado ao longo de sete anos, o filme se passa no final dos anos 70 e tem como pano de fundo o sistema opressor do regime militar que está com os seus dias contados para acabar. Nesse contexto, uma comunidade de artistas que vivem no cabaré Chão de estrelas, confronta suas ansiedades, medos, provocações e reflexões diante do sistema num clima de desbunde completo. Entre a polarização dessas duas situações explode o amor entre um cadente de 18 anos (Jesuíta Barbosa) e o dramaturgo e agitador cultural Clécius vivido por um formidável Irandhir Santos, um ator que a cada projeto só vem crescendo.

Hilton LacerdaEm conversa com Hilton Lacerda publicada no site Meiaum, ele me explicou que a questão da época abordada no filme, tendo como personagem secundário o fantasma da ditadura, é apenas uma metáfora para falar sobre aqueles que estão à margem da margem da sociedade nos dias de hoje. E, olhando por este prisma, o olhar do roteirista e cineasta aqui tem viés “psicoantropológico”, quando ele se propõe avaliar o assunto dentro da linha do tempo.

“O Brasil é um país que se gaba de ser liberal, mas sabemos que na verdade é bem conservador. Me interessava modelar o passado dentro desse contexto no sentindo de entender, mesmo que de forma abstrata, o que seria o futuro do filme. E o futuro do filme é o que somos hoje”, me disse.

Enfim, na trama, o grupo, que foi inspirado na anárquica e mítica trupe teatral pernambucana Vinvencial Diversiones, mesmo marginalizada, atuando na periferia do sistema, consegue atiçar e despertar a curiosidade da elite intelectualizada local com sua mistura do grotesco e do lírico por meio de montagens impactantes. O filme choca por explicitar cenas de sexo gay, mas surpreende pela construção da narrativa sofisticada que flerta com as ousadias do Cinema Novo e do Cinema Marginal. Daí a presença forte de cenas em Super 8 no filme como elemento narrativo que nos faz lembrar de nomes como Edgar Navarro e Jairo Ferreira.

Não resta dúvida de que Tatuagem trata-se de um projeto sensorial da melhor qualidade, por isso o fato de muitas pessoas que vivenciaram ou conheceram, mesmo que à distância aquela realidade se identificarem de forma passional com o filme.

Não nego que senti certo desconforto ao assistir o filme, me lembrando daquelas sessões sufocantes, constrangedoras dos filmes do Pasolini da última fase ali mesmo, no Liberty Mall. Mas o cinema é assim mesmo, feito de sustos e surpresas.

* Este texto foi escrito ao som de: Sessão das dez (Sociedade da Grã-Ordem Kavernista – 1971)
Sessão das dez 3

A estrela de Nílton Santos

O lateral esquerdo só vestiu duas camisas: a do Botafogo e da Seleção Brasileira

O jogador só vestiu a camisa do Botafogo e da Seleção Brasileira

Não vi o Pelé jogar. Nem o Mané Garrincha. Muito menos o meu ídolo do Atlético Mineiro Éder. E como muito de vocês que estão me lendo agora eu também não vi a enciclopédia do futebol Nílton Santos, que morreu ontem, aos 88 anos, em campo. Uma pena porque diante da mediocridade em que o futebol brasileiro se encontra nos dias de hoje, duvido muito, mas muito mesmo, que algum dia eu tenha o prazer de ver um novo Nílton Santos jogando por aí.

Aliás, se tinha uma coisa que a eterna estrela do Botafogo esbanjava de sobra era ética profissional e amor à camisa. Dois valores dentro da cosmologia futebolística que estão em desuso atualmente. Parece inacreditável, mas o jogador só vestiu duas camisas em toda a sua vida: a do Botafogo e a da Seleção Brasileira. Só pelo alvinegro carioca Nílton Santos, que foi campeão mundial pela seleção em 1958 e 1962, jogou 729 jogos em 17 anos de entrega. E daí neguinho vem me falar de Neymar, Ganso, Pato, Reco, Marreco e de toda essa fauna brasileira de chuteiras que para mim não diz nada. Nílton Santos, que eu nunca vi jogar, sim. E por um motivo muito simples, o cara tinha história e só por isso será eterno.

Desde guri que ouço meu pai, que é corinthiano chato, falar de Nílton Santos. Eu nem sabia direito quem era essa tal de bola entre as quatro linhas e porque aquele bando de gente ficava correndo para lá e para cá, mas o coroa enchia minha cabeça com suas lembranças dos grandes jogos que assistiu. Hoje, ao me lembrar de suas recordações apaixonadas, sinto uma inveja boa, gostosa e até saudável aqui dentro de mim.

Pois bem, a mitologia do futebol nos ensina que Nílton Santos foi o maior lateral esquerdo de todos os tempos. E deve ter sido mesmo porque a imprensa esportiva de antigamente não mentia, nem era tão ordinária quanto a de hoje. Também pudera porque quem escrevia sobre o assunto naquele tempo era o Armando Nogueira, o João Saldanha – que imortalizou as históriasBotafogo Nílton de bastidores do Botafogo no mágico Os subterrâneos do futebol o Mário Filho, e claro, o seu irmão Nelson Rodrigues. Num texto de 1962 para uma edição especial da revista Fatos e fotos, o mais formidável de todos os cronistas, registrou assim o desempenho de Nílton Santos durante uma partida no mundial daquele ano:

“Contra a Inglaterra foi uma vitória linda. Não tínhamos Rainhas nem Câmara dos Comuns, nem lordes Nelsons. Mas tínhamos Garrincha. E tínhamos o Zagalo, o de canelas finíssimas e espectrais. E Nílton Santos, com a sua salubérrima eternidade”, registrou o autor de A pátria em chuteiras.

Ou seja, pela ótica de quem entendia do assunto, Nílton Santos já era eterno antes mesmo disso acontecer. Hoje, quando vejo um lateral esquerdo avançar até a linha de fundo e fazer um lance genial ou até marcar um gol, mesmo que o sujeito que fez isso não tenha consciência, entendo que isso só aconteceu por causa da ousadia, elegância e talento de Nílton Santos. Sim, porque além de tudo o cara era inteligente, o que os jogadores de hoje não são. Aliás, os jogadores de hoje são acéfalos e de alma suja.

“Até a lavadeira gostava de mim porque meu calção andava sempre limpinho”, revelou certa vez o modesto Nílton Santos, se esquecendo de evidenciar sua elegância em campo.

Uma torcedora de 22 anos que, assim como eu nunca viu o Nílton Santos jogar, definiu bem quem foi esse grande jogador ontem. “O Botafogo é o Nílton Santos e o Nílton Santos é o Botafogo”, resumiu. Não é preciso dizer ou escrever mais nada.

* Este texto foi escrito ao som de: A quick one (The Who – 1966)

A quick one

Amor na tarde (1957)

O charmoso Gary Cooper sendo seduzido pela inocente e angelical Audrey Hepburn

O charmoso Gary Cooper sendo seduzido pela inocente e angelical Audrey Hepburn

Se há um cineasta que amo acima de todas as coisas é o genial Billy Wilder, cuja ironia cínica de suas tramas era impagável mesmo quando ele estava falando sério. Ah, sim, e se um dia eu vier a ser roteirista, quero escrever histórias como as que ele nos brindou junto de inúmeros parceiros ao longo de uma trajetória gloriosa em Hollywood. E o melhor desses cúmplices foi o romeno I.A.L. Diamond, com quem começou uma pareceria de sucesso em 1957, estreando no formidável Amor na tarde, agora disponível em DVD.

O título original, Love in the afternoon, foi homenageado por Renato Russo numa canção que, aparentemente, não tem nada a ver com o filme – elucidando mais do que nunca a paixão pelo cinema, além de cultura vasta do eterno líder da Legião Urbana -, e faz referência às fugas dos dois amantes da trama nesse período idílico do dia.

Filha de um detetive particular (Maurice Chevalier) perito em desvendar casos de adultério em Paris, Ariane (Audrey Hepburn) cresceu ouvido sobre essas histórias imorais de homens e mulheres, cujo limite em nome do amor não tem fim. “Tudo um esgoto”, condena o pai, um moralista hipócrita.

Acontece que a jovem inocente se apaixona por um dos investigados do pai, o charmoso e mulherengo playboy americano Frank Flannagan (Gary Cooper). Quando Ariane descobre que ele está prestes a ser assassinado por um marido ciumento, corre para salvar seu amor platônico e bingo, surge em cena mais uma vez a inteligente teia de situações e diálogos hilários do iconoclasta Wilder, um mestre em estudar o comportamento humano a partir de suas fraquezas ridículas.

Amor na tarde“Incrível o que os violinos fazem! Principalmente se você não é de falar muito”, se gaba o galante Mr. Flannagan, um sedutor incorrigível que sempre se cerca de músicos quando vai abater mais uma presa. Uma delas, diga-se de passagem, vivida pela verdadeira mulher do cineasta, a bela e elegante Audrey Wilder.

Mas um dia é da caça e outro do caçador. E assim o insensível e egoísta sedutor acaba seduzido pela inocência numa versão cômica de Wilder do romance Lolita de Vladimir Nabokov, com a ninfeta da fita cheia de amor para dar a alguém especialista em desperdiçar paixões a léu. “Quando as pessoas se envolvem fica chato. Brigas e lágrimas, tudo fica piegas”, diz ele repelindo a ideia de relacionamentos sérios. “Amar e fugir, assim ninguém se machuca”, insiste.

E o charme do filme que foi uma das maiores bilheterias de 1958, está justamente em confrontar o verdadeiro sentido do amor e da paixão a partir da famosa fórmula de Billy Wilder em trocar os papeis dos personagens. E, embora fosse conhecido por ser uma pessoa amarga, demonstra sensibilidade ao revelar o quanto somos ridículos e somos capazes de fazer qualquer coisa quando estamos apaixonados. A cena final do filme na estação de trem com Audrey, um eterno anjo de beleza chorando por causa do garboso Gary Cooper, é antológica.

E por falar em Gary Cooper, o ator não foi a primeira escolha do diretor, muito menos o plano B. A princípio Wilder queria que Cary Grant (uma obsessão de trabalho desde Sabrina) fosse o playboy milionário da trama e quase escolheu Yul Brynner para substituí-lo, mas acabou ficando, a contragosto, com o astro de Matar e morrer, que morreria quatro anos depois, vítima de câncer. Certo mesmo, só a deslumbrante e diáfana Audrey Hepburn.

* Este texto foi escrito ao som de: Edith Piaf – 30th Anniverssaire (1994)

Edith Piaf

Johnny Cash entre Bob Dylan e Jesus

Além de George Harrison, o Man in Black também era um grande admirador de Freewheelin'...

Além de George Harrison, o Man in Black também era um grande admirador de Freewheelin’…

No início dos anos 60 Johnny Cash estava tentando – como conta no quarto capítulo de sua biografia lançado pela editora LeYa -, chegar à realidade por trás de uma parte dos Estados Unidos. Por isso, embalado por muita anfetamina, praticamente se tornou um caubói do século 19, pesquisando a fundo a história dos primórdios da América. Virou rato de bibliotecas, livrarias e lojas de discos em busca de material sobre o tema e, um dia, em Austin, no Texas, fez amizade com um sujeito que lhe deu de presente uma cópia da autobiografia de Johnn Wesley Hardin, o afamado fora da lei conhecido como o último pistoleiro do Velho Oeste.

“Por anos parecia que eu conhecia Hardin tão bem quanto a mim”, confessa.

Talvez por tudo isso o cantor country ficasse mais ligado também em música folk, tanto em canções autênticas de diversos períodos e aspectos da vida norte-americana, quanto no revival em torno do gênero que inundava as lojas e as rádios da época. Foi assim que o clássico álbum The Freewheelin’, de Bob Dylan, chegou às suas mãos. “Eu tinha um gravador portátil que levava para a estrada e colocava o Freewheelin’ para tocar no backstage. Depois, saia para fazer o show e o ouvia de novo quando voltava do palco”, revela. “Freewheelin’ continua sendo um dos meus discos favoritos de todos os tempos”, admite.

Formidável essa declaração de Cash porque até então, o único grande artista que havia declarado juras de amor a essa obra-prima do folk foi George Harrison.Johnny e Bob

Motivado pela paixão em torno do estilo root do bardo, Johnny Cash se sentiu à vontade para lhe escrever uma carta dizendo ser um grande fã dele e Dylan devolveu dizendo acompanhar a carreira de Man in Black desde I walk the line. Desse primeiro contato entre os dois artistas nasceria uma grande amizade, norteada por trocas de confidências profissionais.

“Ainda tenho todas as cartas dele guardada em meu cofre”, conta.

Mais tarde, Johnny Cash faria a antológica participação no disco Nashville Skyline de Bob Dylan, imortalizando uma versão melancólica do sucesso de 1963, Girl from the North country, e o autor de Blowin’ in the Wind pagaria o favor sendo convidado do programa de TV de grande sucesso do amigo.

Já a década de 70, como descreve Cash no livro, foi marcada por uma época de abundância e crescimento não só financeiro, mas pessoal e, sobretudo, espiritualmente. Nesse período, se sentindo mais próximo do “onipresente”, mergulhou de cabeça num projeto ambicioso que colocou à prova sua fé. Tratava-se do filme Gospel Road, uma releitura sobre a vida de Cristo segundo a visão do artista. Realizado em Israel, com cenas filmadas nos lugares por onde Cristo passou, o filme é uma viagem pessoal de Cash rumo ao espiritual.

“Estávamos sendo guiado pela fé, usando nosso próprio dinheiro, sem nenhum patrocínio nem acordo para distribuição do filme”, comenta.

Obra cult exibida pelos canais por assinatura, Gospel Road é um achado cinematográfico com belas imagens da Terra Santa e a potente e soturna voz de Cash norteando as pegadas do “Salvador”. Fragmentos do filme – destaque para a crucificação de Cristo – seriam usados com beleza poética no premiado clipe da música Hurt, um dos últimos sucessos da carreira do cantor antes de morrer em 2003.

* Este texto foi escrito ao som de: The freewheelin’ Bob Dylan (1963)

The freewheelin Bob Dylan

O pianista (2002)

O formidável ator Adrien Brody na pele do sofrido Szpilman. Atuação lhe rendeu um Oscar...

O formidável ator Adrien Brody na pele do sofrido Szpilman. Atuação lhe rendeu um Oscar…

Um sujeito maltrapilho, magricela e abatido, verdadeiro farrapo humano entra no minúsculo apartamento e ouvi as instruções de seu cicerone do inferno com atenção. Ele explica que em frente à sua janela fica o hospital militar, na esquina a delegacia. “Não faça o menor barulho, ninguém sabe que você está aqui, estamos na toca dos leões”, diz ele, após trancafiar por fora o homem cuja expressão no rosto nos faz pensar que a esperança nunca existiu.

Sozinho, ele mira o piano de armário encostado à parede e se aproxima. Levanta a tampa e remove o pano que protege as teclas da sujeira. Meio que acometido por um êxtase profundo, para desespero do espectador, o sujeito maltrapilho começa a tocar o instrumento. Mas logo notamos que a cena não passa de uma licença poética do cineasta Roman Polanski, já que a música que invade as telas só acontece na imaginação do personagem O pianista, filme de 2002 que o levou a ganhar o único Oscar de sua vida como Melhor Diretor.

Do ponto de vista do cinema o filme é um dos mais importantes trabalhos já realizados pelo cineasta fraco-polonês. Mas com certeza o melhor da sua carreira pela perspectiva humanista, dado o brutal realismo com que a trama é contada. A história, baseada na tragédia pessoal do pianista polonês Wladyslaw Szpilman, é comovente e exemplar, já que reverbera nas lembranças de menino de Polanski, um judeu de origem polonesa que sentiu na pele os horrores do nazismo.

O pianista 2Assim como Polanski, Szpilman perdeu parentes nos campos de concentrações nazistas, só que as humilhações e privações por que o pianista passou foram bem maiores e torturantes, com o destino reservando aos dois, caminhos diferentes. O filme narra esse percurso de dor, sofrimento e perda de uma forma tão sufocante que, se você nunca viu O pianista alguma vez, com certeza não terá coragem de repetir a dose tão cedo. Confesso que foi difícil eu ver o filme novamente depois de tanto tempo.

“Sair é fácil. Difícil é sobreviver lá fora”, diz um colega de prisão, alertando Szpilman sobre a natureza perturbadora de sua escolha.

Sim, Szpilman consegue fugir, mas como alertara o amigo, a vida lá fora foi massacrante. Nunca a liberdade seria tão opressora e a solidão angustiante. A cena do personagem vivido por um formidável Adrien Brody (vencedor do Oscar de Melhor Ator) entre os escombros da guerra é horripilante. Mais ainda a sequencia em que ele se finge de morto deitado num asfalto frio e negro, salpicado de sangue de compatriotas que não tiveram a mesma sorte que ele.

Daí que a salvação vem de onde menos se espera, ou seja, do lado inimigo, com a comiseração quase metafísica de um oficial nazista (Thomas Kretschmann) que se comove com os dedos decrépitos e combalidos do pianista tocando Chopin. A poesia do caos que emana da cena é perturbadora, só não chora quem não tem alma ou sentimentos.

No material extra do DVD o cineasta Roman Polanski explica que queria que a realidade fosse tão impregnante dando a impressão de cenas da vida. Por isso a inexistência quase total no roteiro de Ronald Harwood, que mostra bondade e maldade entre judeus, poloneses e alemães. Isso porque, na visão pessimista do diretor. O ser humano é imprevisível, nem um pouco confiável.

* Este texto foi escrito ao som de: Passagem secreta (Pierrot Lunar – 2013)

Pierrot lunar 3

Jukebox Sentimental – Morning Song

Jewel: uma pérola de beleza e talento

Jewel: simplesmente uma joia de beleza e talento

Nem me lembro direito como a cantora Jewel entrou em minha vida. Acho que foi por causa daquela fase MTV que eu levava, nos meus dias de pré-faculdade, do tempo em que a MTV era boa, de quando eu ouvia uma música no canal e saia que nem louco para comprar o CD logo em seguida seja aonde fosse. Só sei que a primeira coisa que me chamou atenção, mesmo antes da beleza angelical da artista, foi sua voz quase metafísica. Que coisa fantástica e extraordinária de se ouvir, viu!

E acho que, se não fosse pela Janis Joplin, talvez eu não tivesse tanta ternura auditiva para sentir a sensibilidade dessa jovem garota de cabelos de milho que passou uns maus bocados para chegar aonde chegou. Filha de hippie nascida no estado do Utah e criada no Alasca, ela tocou na noite junto com o pai um bom tempo e aprendeu canalizar as agruras da vida que a atormentava nos versos das inúmeras poesias que escreveu. Canções também.

Só anos depois, bem depois mesmo que eu percebi que ela era uma herdeira e discípula direta do estilo folk de uma das maiores poetas da música norte-americana, nos dizeres do Renato Russo, a canadense Joni Mitchell. Para mim, Jewel será sempre sinônimo de Joni Mitchell e ponto final.

E hoje, todas às vezes que vejo a cor azul céu de um CD, seja de que artista for meu caro, me lembrarei de Pieces of you, o primeiro disco da cantora lançado em 1995, que escutei assim a exaustão, quase até furar. Era o (What’s the story) – Morning Glory? do Oasis, dia e noite em minha vitrola, e Pieces of you da Jewel.

“O que chamamos de natureza humana é na verdade habitat humano”, diz uma frase lírica jewel 3estampada ao lado do rosto de anjo da (então) jovem cantora.

A poesia beatnik de Jewel é comovente, apaixonante e desafiadora. Não há como não ficar de joelhos, por exemplo, diante da dramática Foolish games, com seus poderosos e acachapantes versos acompanhados por um piano dolorido e arranjo de cordas idem:

“Bom, no caso você falhou em perceber/No caso você falhou ao olhar/Este é meu coração sangrando diante de você/Esta sou eu de joelhos”, canta ela, com emoção pungente. “Estes jogos tolos estão me despedaçando/E suas palavras impensadas estão partindo meu coração/Você está partindo o meu coração”, arremata a cantora já em pedaços.

Já a dançante faixa de abertura, Who will save your soul?, um gostoso e contagiante reggae folk, é uma crítica àquelas pessoas que glorificam o bem material acima de tudo e levam uma vida de vazio espiritual retumbante.

Contudo, é a narrativa cotidiana e despojada de Morning song a razão deste texto. Não duvide, mas canções cujo tema é uma manhã, seja ela de que jeito for ou aparecer, sempre rende boas histórias, tristes ou não. Dá vontade de sair da cama depois de ouvir alguém surrando em seu ouvido alguma coisa como isso?

“Deixe o telefone tocar/Vamos voltar a dormir/Deixa o mundo girar lá fora/Você é o único que eu quero ver”, avalie. “Você pode ser Henry Miller e eu serei Anaïs Nin/Exceto que desta vez será ainda melhor/Nós ficaremos juntos no final/Vamos lá querido/Vamos lá querido, vamos voltar para cama”, continua a cantora, esbanjando cultura e talento.

Outro dia, ao rever um primo que não via há tempos e que recordou dos dias em que a gente ouvia à exaustão Jewel, me senti motivado a escrever essas mal traçadas linhas. Este texto é em homenagem a esse período de inocência e descoberta.

* Este texto foi escrito ao som de: Pieces of you (Jewel – 1994)

Jewel 2

New: O velho Paul de cara nova

Novo disco do artista setentão prova que ele está em plena forma

Novo disco do artista setentão prova que ele está em plena forma

Paul McCartney é daquele tipo de artista prestigiado e consagrado que até ficamos acanhado, desconfortável até, de fazer qualquer tipo de crítica negativa com relação a um projeto do cara. De modo que, contrariado com a audição de fragmentos do seu mais novo álbum, lançado no último mês, desisti de escrever qualquer coisa sobre o assunto só para não ter que falar mal do meu ídolo e beatle predileto.

Mas meu amigo Pedrão não me abandonou, incentivando que eu fosse escutar o disco e me surpreendi já que o registro traz o velho Sir Macca de cara nova. Pode apostar, o título não é gratuito, ou seja, não é um ídolo setentão querendo bancar o jovem moderninho ou coisa do tipo, nada disso. Apenas um senhor experiente mostrando que ainda está em plena forma para surfar na crista da onda dos artistas do momento e quem são eles mesmos?

Assim, no estilo Caetano Veloso da fase Cê, o mais melódico dos Beatles se cercou de talentosos jovens produtores para gravar o primeiro álbum só de inédita desde Memory almost full, lançado em 2007. Foram parceiros nesse trabalho estrelas como Mark Ronson (o homem por trás do sucesso de Back to Black ­– Amy Winehouse), Ethan Johns e Giles Martin, os dois filhos de nomes importantes na trajetória dos Beatles (Glyn Johns e George Martin) e o festejado produtor Paul Epworth (Adele), co-autor de três faixas do disco.

Claro, nem de longe New lembra os melhores trabalhos de Sir Macca que gosto dos 16 trabalhos que ele lançou pós-beatle e lembro apenas o mágico Flaming pie (1997), para não citar os clássicos dos anos 70.

Paul MagazineO toque jovem pode ser sentido na elétrica canção de abertura Save us, assim como na dançante, Appreciate, que nem lembra qualquer coisa já feita pelo cantor e compositor ao logo de mais de 50 anos de carreira. Já a faixa título New é a que mais tem a assinatura dos pop rock que McCartney escreveu em sua fase solo. Talvez por isso tenha sido escolhida para ser a música de trabalho do disco. Aqui sobressai o inconfundível falsete do artista que tanto gosto. Sombra dos tempos ao lado dos amigos John, George e Ringo, reverbera – mas só de leve -, em Alligator e I can bet, com seu refrão a la Get back. E não tem como ficar parado diante do piano dançante de Queenie eye.

Mas grande admirador do estilo de Paul McCartney tocar violão, tenho carinho pelas baladas folks  que ele cria e New conta com duas pérolas adoráveis do gênero. Uma é a singela On my way to work. Mas é a nostálgica Early days, com sua introdução que lembra as baladas de Rod Stewart, da fase glam rock, a que me pega de jeito, completamente com vontade de chorar porque me faz lembrar os tempos em que eu e os meus primos brincávamos sem deixar que as maldades da vida maculassem nossa ingenuidade familiar. A lembrança não vem ao léu já que na letra Paul faz referência ao tempo em que escrevia canções com o eterno amigo John Lennon na sala de estar da casa deles.

“Não poderiam tirar isso de mim, se eles tentassem/Eu vivi aqueles dias de antigamente/Tantas vezes tive de mudar da dor ao riso/Apenas para não ficar louco”, canta Paul, transbordando de emoção.

Como dá para ouvir, o velhinho ainda dá para o gasto por pelo menos mais setenta anos.

* Este texto foi escrito ao som de: New (Paul McCartney – 2013)

New Paul

Blue Jasmine (2013)

Em seu novo filme Woody Allen coloca em evidência a futilidade humana ao contar o drama de uma socialite

Em seu novo filme Woody Allen ironiza a futilidade humana sob o prisma de uma socialite decadente

Para mim, assistir a um filme do Woody Allen é uma sensação tão gostosa quanto ouvir uma canção dos Beatles, tomar um cabernet sauvignon ou me encantar com o sorriso cintilante e mágico da minha estrela da manhã e da noite. E foi com esse estado de espírito que fui outro dia, depois de um sushi, ver o mais novo trabalho do diretor nova-iorquino de 78 anos, que serão completados no próximo mês de dezembro.

Blue Jasmine, em cartaz na cidade desde a semana passada, se enquadra na mesma vibe de seus recentes trabalhos elogiadíssimos como Match Point (2005), Vicky Cristina Barcelona (2008) e Meia noite em Paris (2011). Ou seja, divertidas e contundentes comédias dramáticas onde a natureza humana, com todas as suas podridões e pobrezas de espírito, são expostas de forma constrangedora.

“Você me conhece, tenho o hábito de ostentar”, diz logo no começo do filme a personagem-título vivida por uma espetacular Cate Blanchett, denunciando de cara, a persona fútil do papel.

Casada com um bilionário (Alec Baldwin) das finanças de Manhattan que acaba de ser preso por, entre outras coisas, fazer filantropia com o dinheiro dos outros, ela vê, num piscar de olhos, sua vida de luxo e ostentação se esvair como água na areia. Literalmente na rua da amargura, sem nenhum futuro glamoroso pela frente, ela então parte para São Francisco em busca da irmã pobre (Sally Hawkins) que sempre desprezou. Foi, bem ou mal, a única coisa que lhe restou.

Bem, o choque de realidade entre os dois mundos será grande para Jasmine que, depois do queBlue Jasmine aconteceu, ficou meio neurótica e anda falando sozinha pelos cantos, quase babando na echarpe. Tolerar uma rotina mais simples e regrada será o seu grande desafio, o que ela até tenta fazer, mas se perde no mundo de mentiras e floreiros que inventa para não esquecer o passado de luxo que viveu por completo.

“Às vezes não consigo respirar fundo. E quando consigo entro em pânico”, se apavora ela, dando abertura para as geniais tiradas do diretor, um mestre com as palavras e os trocadilhos.

Amargo, cínico e melancólico sem perder o humor, Blue Jasmine é um deboche sobre a futilidade, a obsessão cretina da humanidade por dinheiro e poder, claro, também sobre o fascínio idiota, quase infantil pela glamorização do status. Mas Woody Allen, com a elegância que lhe cabe, mostra que as aparências enganam.

“Ele é sexy e não roubou”, sai em defesa do namorado bronco (Bobby Cannavale, a cara do vocalista do Red Hot Chili Peppers) a irmã pobre, quando se sente ofendida pela desdenhosa Jasmine.

A narrativa sinuosa do filme a todo instante vai e volta no tempo e é charmoso, quase imperceptível, a forma com que o cineasta conduz os flashbacks. Definitivamente a mentira tem pernas curtas, daí o fato de Blue Jasmine ser um filme triste, amargo até. O desfecho com a personagem de Cate Blanchett abandonada num banco de praça é angustiante e desolador. Saí do cinema arrasado, com vergonha das pessoas que passavam por mim pelo shopping. Pior. A vergonha foi bem maior quando vi o reflexo da minha imagem numa vitrine. O ser humano é entediante.

* Este texto foi escrito ao som de: At last (Etta James – 1961)

Etta James - At last!

Sessão de terapia (GNT)

O falecido ator Cláudio Cavalcanti, como um dos destaques da nova temporada do seriado

O falecido ator Cláudio Cavalcanti é um dos destaques da nova temporada do seriado

“Mas nos deram espelhos/E vimos um mundo doente/Tentei chorar e não consegui”. Esses versos de Renato Russo da canção niilista “Índios” são mais do que ilustrativos quando olhamos para a vida e nos atentamos para as contradições, injustiças, dilemas e enfermidades que nos cercam. Enfermidades essas que são muitas, infinitas e inerentes ao nosso dia a dia e por isso mesmo nem percebemos o quanto nossa alma anda machucada, cicatrizada das chagas do mundo. Acredite, viver pode ser uma barra.

Daí que, se você for um incrédulo como eu que não acredita em deus ou em bobagens do tipo, a figura do psicanalista pode ser às vezes redentora. Por isso que ando meio fascinado pela série Sessão de terapia, exibido pelo canal por assinatura GNT. Confesso que fiquei curioso para ver o programa só por conta da participação do ator Cláudio Cavalcanti, um ídolo da minha adolescência, mas surpreendi com os ingredientes a mais. Com direção do ator Selton Mello, o programa, baseado em seriado israelense criado pelo psicanalista Hagai Levi, conta a experiência de vida e profissional do psicoterapeuta Theo Cecatto (o ótimo e charmoso Zécarlos Machado) com seus pacientes.

A cada sessão dele com seus clientes somos apresentados a novos problemas e situações de conflito cotidianos, do duro embate com a difícil realidade que nós somos obrigados a enfrentar, faz sol ou chuva. O cenário sombrio, permeado por uma paleta de cores escuras que vai do cinza ao verde Sessão de terapiamusgo, passando pelo marrom escuro e preto, câmera onipresente, parece condizente com o leque de temas explorados pelo médico da alma como abandono, relação familiar e amorosa conturbadas, aborto, câncer, o medo de enfrentar a sociedade, rejeição, depressão, falta de estima.

E como os pacientes falam. Falam e choram em demasia. Por isso a simbólica caixa de lenços separando a confortável poltrona do psicoterapeuta Theo e seus pacientes. Afinal, esse é o seu papel, ou seja, o de ajudar seus pacientes a botar para fora todas as angústias e desesperos que os afligem. Enfim, esvaziar a alma do sofrimento que o martiriza.

“Você tem que aprender a assumir suas histórias e dividir suas lembranças com as pessoas”, ensinou ele a insegura advogada Paula (Adriana Lessa).

Outro dia me comovi com a história de Carol (Bianca Comparato), uma jovem estudante de arquitetura que se sente oprimida com a notícia de um câncer. Revoltada, sem entender e assimilar a situação por que passa, ela tem uma postura arrogante diante do seu caso, esnobando até a opinião do especialista Theo e de seus pares. A parábola do homem do deserto que busca uma explicação para o seu sofrimento no próximo, enquanto o que ele deveria fazer era escutar sua própria voz consciência é exemplar.

O interessante é que, dado a qualidade da série, parece que estamos fazendo terapia junto com os personagens. Daí sobressaí o talento do ator Zécarlos Machado como protagonista, emprestando ao personagem central da trama voz soturna e calma, semblante compenetrado e discurso acolhedor.

Bom, minha analista desistiu de mim. Acho que ela entendeu ser complexa demais essa minha história de rejeição amorosa e quer saber? Me too! Mesmo assim, ela, minha analista, me deu uma dica que talvez tenha me ajudado. Ela sugeriu que eu externasse meu sofrimento por meio de algum tipo de atividade e daí nasceu o blog Luciointhesky. E quem disse que Freud não sabia das coisas?

* Este foi escrito ao som de: Dois (Legião Urbana – 1986)

Dois