Rita Lee: A rainha do rock nacional

Rita Lee é a nossa Mick Jagger de saia...

A novela era Mulheres de areia. A personagem rebelde e mimada era vivida pela exuberante Viviane Pasmanter que, sempre que aprontava alguma para cima do pai esnobe e arrogante – o saudoso Raul Cortêz – tinha suas estripulias embaladas pela visceral Ovelha negra, sucesso de Rita Lee do disco, Fruto proibido (1975). Foi quando percebi que a ruivinha sardenta tinha vida própria fora dos Mutantes, a maior banda de rock do Brasil e uma das melhores do planeta, os integrantes do Belle & Sebastian que o digam.

Embora aposentada dos palcos desde janeiro, aos 64 anos, essa filha de pais filhos de gringos que quase virou freira se tivesse ido pela cabeça da mãe carola, não parou de criar e a prova disso está no disco Reza, lançado este mês pelo selo Biscoito Fino. A faixa-título pode ser conferida na novela Avenida Brasil.

Desbocada, irreverente e alto astral, Rita Lee, nossa Mick Jagger de saia, será para sempre a grande rainha do rock, um título que começou a ser forjado nos distantes anos 60, quando, ao lado dos irmãos, Arnaldo e Sérgio Baptista, revolucionou a MPB junto com a tropicália de Chico e Gilberto Gil.

“Era um período em que estávamos aprendendo o Brasil”, disse numa entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, lembrando-se daqueles efervescentes tempos.

Após um casamento de mentira, de deboche mesmo, como ela gosta de sustentar, com Arnaldo, dos Mutantes, relacionamento regado a drogas e loucuras, partiu para uma carreira solo de sucesso apoiada pelo novo amor de sua vida até então, o hoje maridão Roberto Carvalho, aquele tipo de artista brilhante que sabe viver discretamente à sombra de uma estrela maior, no caso, sua mulher. “O astral do papel não gosto, não”, disse certa vez à charmosa Marília Gabriela, referindo-se ao relacionamento aberto que tem até hoje com o guitarrista.

Uma das marcas registradas da personalidade de Rita Lee é o humor debochado, irônico recheado de um vocabulário inusitado e expressões do balacobaco. Um exemplo está nas rimas de Amor & sexo, escrita em parceria com o maridão e o cerebral Arnaldo Jabor. “O amor nos torna patéticos/Sexo é uma selva de epiléticos”, canta.

De modo que o chargista Ângeli não precisou ir muito longe para buscar inspiração na hora de criar a desbocada personagem Rê Bordosa, pinçada da juventude da artista, que teve sérios problemas com drogas e bebidas. Anos mais tarde, com muito bom humor, ela emprestou a voz à personagem no longa de animação, Wood & Stock: Sexo, orégano e rock ‘n’ roll.

E é com esse jeitão bem paulistano de ser e ver as coisas, encarar a vida que ela segue em frente sem medo de ser feliz e dizer o que pensa. Antenada, fez do twitter poderosa ferramenta de comunicação com seu público e àqueles que são refém do mundo virtual. Para tanto, tem como defesa algumas personas que criou. “Quando eu não sei dizer não o personagem sabe dizer”, admitiu certa vez. “Para mim, a Rita Lee é um dos personagens”, confessou.

Foi com a Rita Lee que aprendi um troço gostoso quando pego o meu violão que é tocar no banheiro, o melhor lugar da casa para isso. “Tem uma acústica fantástica, já notaram?”, observou toda faceira. “A coisa que mais gosto é fazer música”, confessou.

Ainda bem, para nossa sorte.

* Este texto foi escrito ao som de: Fruto proibido (Rita Lee – 1975)

Videoteca Básica (08) Cantando na chuva

Gene Kelly, feliz até debaixo d’ água…

Eu quase não acreditei, mas um dia desses, fuçando o twitter, uma repórter da Globo, âncora de peso até, escreveu que tinha assistido ao filme O artista e não gostado, comentando, meio com cara de sino a seguinte bobagem: “E aquele ator, hein… A cara do Gene Kelly…”, escreveu. Meu Deus, e ela é tão linda, parece tão competente…

A verdade é que muitos não entenderam que o filme ganhador do Oscar de 2012 nada mais é do que uma linda homenagem a um dos musicais mais encantadores e importantes de todos os tempos, Cantando na chuva. E não só isso, reverencia o cinema mudo também, um dos pilares da indústria cinematográfica norte-americana. E sim, o Jean Dujardin está a cara do Gene Kelly.

Enfim, nem sei qual foi o primeiro musical que vi na vida, mas me lembro de que o meu irmão sempre achou que eu fosse gay por gostar desse gênero cinematográfico, mas, quando assisti a Cantando na chuva pensei: “Caramba, que obra-prima!”. E continua sendo até hoje como o musical mais contagiante e eletrizante que já vi, além de um dos filmes mais divertidos, inteligentes e deliciosos já realizados. A cada sessão é uma golfada de prazer.

E me contem, existe coisa mais divertida do que vê o ícone da dança Gene Kelly em cena? Não, simplesmente porque ele – co-diretor do filme ao lado de Stanley Donen -, é a alma e o coração desse musical estupendo. Um poço de simpatia e carisma até debaixo d’água é só conferir, como mostra a cena mais famosa da fita.

A trama bem construída em torno de engenhoso exercício de metalinguagem tem como foco a chegada do som no cinema. Para muitos a novidade foi um caos porque alguns podiam sustentar seus belos rostos maquiados diante dos espectadores, mas aqueles que não tinham uma voz bem dotada foram desmascarados ao primeiro ruído.

É o caso dos astros Don Lockwood (Gene Kelly) e Lina Lamont (Jean Hagen). Ele, dono de voz contagiante, não sentiu os efeitos da nova tecnologia. Já ela, insuportável com sua voz de taquara rachada, humilhada ao ser dublada por uma corista dublada, interpretada pela gracinha Debbie Reynolds.

A partir dessa dificuldade de adaptação, ou seja, da transição do cinema mudo para o sonoro, a dupla de roteirista, Betty Comden e Adolph Green, deitam e rolam em cena, construindo um roteiro cheio de situações hilárias e inesquecíveis como a icônica sequencia em que Gene Kelly, ensopado dos pés à cabeça, se mostra radiante até mesmo cantando na chuva. “What a glorius feeling/I’m a happy again”, garante.

Uma das minhas cenas preferidas é aquela em que o versátil ator Donald O’ Connor, tentando fazer o amigo Gene Kelly se animar diante dos problemas, faz as mais loucas estripulias, inclusive subir pelas paredes, ao som, claro, da divertida Make ‘em laugh, prestem atenção. Mas tem ainda o trio Gene Kelly, Debbie Reynolds e Donald O ‘ Connor mandando ver na gostosa canção, Good morning, melhor até que a dos Beatles.

Reverenciado de forma bizarra por Stanley Kubrick, em Laranja mecânica (1971), o filme, que contou com 99% das canções escritas pela dupla, Nacio Herb Brown e Arthur Freed, levou quase dois séculos para ser reconhecido e reverenciado como um clássico dos musicais e obra-prima do cinema. Como se vê, não é só a repórter âncora da Globo que teve os seus momentos de estultices.

* Este texto foi escrito ao som de: Singin’ in the rain soundtrack (1952)

Einstein discute sobre Hitler e Cristo

Einstein, um homem das estrelas, definitivamente um homem iluminado...

Como todo intelectual judeu em seu país, Albert Einstein teve que sair às pressas da Alemanha quando Hitler chegou ao poder, do contrário viraria churrasco nas mãos dos nazistas. A princípio, o cientista resistiu à ideia, mas quando viu que a coisa estava preta colocou parte dos manuscritos debaixo de um dos braços, a mulher Elsa do outro e partiu para os Estados Unidos. Instalados em Princeton, ele fazia inflamados discursos contra o homenzinho de bigode do outro lado do Atlântico e um dia a esposa o advertiu que ele parasse de falar mal do ditador e contratasse um guarda-costas.

“Você é uma covarde”, rebateu zangado.

Esse episódio quem conta é o seu biógrafo Denis Brian, no livro: Einstein – A ciência da vida.

Bem, já estou lendo a obra já faz um bom tempo porque sempre me encontro metido em outras leituras paralelas, mas quero deixar registrado aqui que estou fascinado por esse senhor de cabelos desgrenhados e roupas desleixadas. Que homem extraordinário e fantástico era ele. Para mim, um grande sábio e humanista que soube dosar seu talento como homem da ciência diante dos problemas sociais e políticos que o cercavam.

Hitler foi um deles e Einstein não teve medo de enfrentá-lo. E toda vez que alguém lhe perguntava sobre sua condição de refugiado e a questão da perseguição ao seu povo, os judeus, ele contava a anedota do judeu russo que precisava ir a Moscou.

O sujeito morria de medo de viajar e por isso se encolheu no vagão de terceira classe para não chamar atenção. Um cossaco entrou no trem e praguejou bem alto: “Malditos judeus, são culpados de tudo. Eles inventaram a fome e começaram a guerra”, disse perguntando ao judeu russo escondido no canto do vagão: “Não são culpados?”. Ao que o judeu russo respondeu: “São, os judeus e as bicicletas”. Com a pulga atrás das orelhas o cossaco questiona mal-humorado: “Porque as bicicletas?”. Sem pestanejar o judeu contrapõe: “E por que os judeus?”.

Einstein era um homem das estrelas e do espaço, tinha inteira intimidade com as coisas do céu como mostra os seus estudos e ensaios, mas sua relação com a religião e as forças metafísicas era quase nula. Se existia um Deus, assim como Hitler, ele tinha uma maneira bem peculiar de encará-lo.

Um dos primeiros amigos do cientista em Princeton, os Blackwood tiveram conhecimento desta visão cristão-judaica do cientista. Sabia que ele acreditava em uma força criativa, mas não em um Deus personalizado que se preocupava com as pessoas da terra.

“Albert lia com regularidade o Velho e o Novo Testamento, pelo valor literário e pelas histórias, e não especificamente pelas mensagens religiosas”, revela a filha da família de amigos.

Certa vez, sua mulher Elsa lhe entregou uma carta de uma mulher cujo filho dizia ser Jesus Cristo. O rapaz estava várias semanas no cume de uma montanha e se recusava a voltar para casa. Desesperada, a mulher pediu ajuda a Einstein, única pessoa por quem o filho abandonaria o retiro espiritual.

Mesmo com suspeita de ser um lunático perigoso, dias depois Einstein o recebeu em sua casa e saiu com ele para caminhar no bosque. “Não lhe perguntei sobre seus delírios, mas lembre-lhe que Jesus descera da montanha para ser pescador de homens”, conta. “Ao sentir nele a paz das alturas, perguntei-me se ele não estaria são e os loucos não seríamos nós”, observou.

Bem, duvido se alguém sabia interpretar a Bíblia melhor do que Einstein. E a alma tortuosa dos homens também.

* Este texto foi escrito ao som de: Ladies and gentlemen we are floating in space (Spiritualized – 1997)

Xingu – A saga dos irmãos Villa-Bôas

Os irmãos Villa-Bôas no coração das trevas brasileiro

Filmes sobre índios brasileiros no mínimo dão tédio. Eu acho. Sou tão colonizado que para mim, se não for índio americano em fita de bang bang não vale, não dá pé. Mas dá gosto ver o drama Xingu, o emocionante filme de Cao Hamburger (O ano em que os meus pais saíram de férias) sobre a saga dos irmãos Villa-Bôas no coração do Brasil. São eles, Orlando, Cláudio e Leonardo, respectivamente desempenhados pela formidável trinca: Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat.

Em 1943, os três abraçaram a Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas, expedição que consistia em desbravar terras nunca antes pisadas por homens brancos, na região central do país. Na condição de líderes, eles acabam se metendo em inúmeras aventuras com um grupo de pioneiros, mantendo os primeiros contatos com tribos indígenas que nunca tiveram, até então, contatos com a civilização.

Bem, não vou ficar aqui perdendo tempo citando nomes indígenas de tribos e lugares até porque não anotei nada e fiquei com uma baita preguiça de pesquisar. O que vale dizer é que o roteiro de Cao Hamburguer, escrito junto com Anna Muylaert e Elza Soares mostra como foi penosa, aventureira e, sobretudo, pioneira a jornada dos Villa-Bôas “no coração das trevas” do país e mais dura ainda a queda de braço com o governo, munido de força, ignorância sobre as condições e os direitos dos índios e muita, mas muita ganância.

“Nós somos o antídoto e o veneno”, chega a dizer Cláudio, o mais contemplativo dos três irmãos. “O que o governo chama de terra desocupada na verdade tem dono”, resmunga noutra passagem.

A expedição visava o avanço do país, em todos os aspectos, mas com a chegada do homem branco às aldeias indígenas vieram as doenças, a intolerância e a morte com surtos de gripes que dizimaram boa parte da população silvícola brasileira. “Nós sentimos responsáveis por ele, afinal não foram eles que nos procuram”, acentua mais uma vez Cláudio.

Os argumentos por partem do governo são truculentos e irresponsáveis. Em dado momento até infantil. “Progresso é bom até para índio”, diz um militar. “E desde quando índio tem Terra?!”, rebate um governador interessado em explorar a terra.

Após travarem inúmeras crises e batalhas políticas, burocráticas e morais, finalmente eles conseguem fundar em 1961, no governo do polêmico Jânio Quadros, o Parque Nacional do Xingu, reserva indígena que na época de sua criação era a maior do mundo, do tamanho da Bélgica.

Emblematicamente crítica e irônica a cena em que um dirigente do governo discute com Orlando Villa-Bôas, o nome do Parque. “Não bota indígena não que no Brasil ninguém gosta de índio”, diz o burocrata. Ao que o matreiro Orlando rebate. “Vamos colocar nacional, militar adora essa palavra”, debocha.

Incrível, mas até hoje os medíocres bastidores da política nacional parece ser coisa para índio ver.

* Este texto foi escrito ao som de: Que pais é este (Legião Urbana – 1978/1987)

O triste e solitário fim de Rock Hudson

Rock num dos seus primeiros papéis na tevê

Eu nem sabia, mas, inconscientemente, Rock Hudson sempre foi uma de minhas obsessões e descobri isso outro dia ao ver um filme dele que nem sabia que existia e que achei formidável, o drama Palavras ao vento (Written on the wind). Por causa disso peguei uma velha biografia dele que tenho de sebo, toda empoeirada e amarelada, e reli em cinco dias.

Um dos rostos mais bonitos do cinema dos anos 50 e 60, o galã hollywoodiano por excelência e uma simpatia no alto de seus quase dois metros de altura, paradoxalmente, Hudson passou a vida toda escondendo seu homossexualismo e foi um dos primeiros artistas do show business a morrer vítima da AIDS, em 1985.

Sua morte foi um choque para a comunidade artística e os fãs, acendendo, na época, uma barulhenta discussão em torno daquela estranha doença conhecida até então como “a peste”. Escrita pelo ator em parceria com a jornalista e novelista, Sara Davidson, Rock Hudson – História de sua vida é um pouco sensacionalista e acho que esse tom foi dado pela parceira de Rock. Até porque o astro de cinema relutou até o último instante de sua vida revelar que era portador do vírus da AIDS, temendo que as pessoas descobrissem sua condição de gay.

Aliás, o livro não se esquiva em contar os momentos marcantes da vida de Rock Hudson no cinema, os bastidores de sua ascensão como ator e os sucessos nas telonas, mas dedica boa parte da obra revelando as intrigas e os conflitos que rolavam no Castelo, sua residência em Beverly Hills, com os inúmeros namorados que teve.

De uma generosidade condizente com o seu tamanho, o ator era incapaz de mandar um de seus casos embora, o que causava atrito com os empregados e amigos dos artistas. “Quando alguém está apaixonado, não convém a gente interferir”, se limitava a dizer Mark Miller, um de seus secretários mais ativos e fiéis.

O problema era que Rock, muitas vezes fulminado pelo bichinho da paixão, acabava sendo explorado por seus amantes que ganhavam cursos pagos, viagens à Europa e presentes caros, além de toda liberdade no Castelo. Alguns relacionamentos acabaram em baixaria e justiça após a morte do astro.

A biografia mostra como a carreira de Rock no cinema entrou em franco declínio em meados dos nãos 70, fazendo com que ele emprestasse sua simpatia, charme e talento ao teatro e televisão, veículo que ele odiava e onde fez sempre bem remunerado, seriados como McMillian e Sra. McMillian e Conexão Devlin. “Existe uma tremenda diferença entre televisão e o cinema, mas ninguém tinha me dito nada”, revela no livro. “Na televisão o inimigo é o tempo. Tudo é feito às pressas, não há vagar para fazer uma coisa cuidada”, reclama.

Esse era o preço do fim da fama, mas o pior ainda estava por vir e os últimos dias de vida do astro foram tristes, bizarros e solitários. Os amigos da indústria o abandonaram ao descobrir que algo estranho estava acontecendo com sua saúde, muitos assustados com o grotesco estão de sua imagem imponente de estátua grega, cada vez mais frágil e feia.

Depressivo e em crise existencial, Rock amargou conflitos de consciência ao expor sua doença junto a colegas de trabalhos e na última série de tevê que trabalhou, Dinastia, o beijo que deu na atriz Linda Evans, com quem fazia par romântico, causou certa polêmica, quando todos souberam que ele era portador a AIDS, celeuma desnecessária causada pela falta de informação. “Ela não está preocupada em contrair a doença e também não é hipocondríaca e sim uma pessoa fatalista que acredita que as coisas acontecem de acordo com um destino”, disse o porta-voz da atriz na época.

Despedida melancólica e bizarra de um dos maiores nomes do cinema o século passado.

* Este texto foi escrito ao som de: Rock ‘n’ Soul (Solomon Burke – 1964)

Barravento: libelo contra o sincretismo

A beleza imagética dos homens arrastando a rede de pescado

Algumas coisas são inadmissíveis. Por exemplo, não tem cabimento um sujeito fanático, louco, obsessivo como eu por Glauber Rocha não ter assistido a todos os seus filmes. Mas a mais crassa, cretina e hedionda verdade é que eu ainda não conhecia Barravento, seu primeiro longa-metragem lançado em 1962 que é um ensaio político contra o candomblé e o misticismo que alienava o povo baiano desde então.

Nunca tinha assistido por falta de tempo e porque acho muito caro dar R$ 50 contos num DVD mesmo em se tratando de Glauber Rocha, um dos ícones do cinema na América Latina. Não, da América Latina, não. Do cinema mundial. Mas outro dia, de bobeira em casa, consegui pescar, no Canal Brasil, o filme e fiquei encantado com a poesia visual da obra, mesclada, já naquele tempo, com virulento discurso político que marcaria o cinema do diretor baiano.

A trama gira em torno de um pequeno grupo de pescadores de uma aldeia, cujos antepassados vieram da África como escravos, mas parece que naquele distante início da década de 60, essa realidade parece não ter mudado muito. “Eu pescador?! Isso aqui não é a África é o Brasil”, situa Firmino (Antônio Pitanga), antigo morador da vila que voltou para casa polarizando tensões diante do provincianismo e da servidão das pessoas com relação à religião. “Candomblé não resolve nada, precisamos é lutar, isso sim. Nossa hora está chegando, irmão”, convoca, entre conflitos amorosos com as lindas, Luíza Maranhão e Lucy Carvalho.

Filmado na praia de Buraquinho, a força imagética do filme, hipnotiza, ventando nas telas, dentro de estilo barroco, a cultura do povo baiano espalhada em signos que se tornaram conhecidos no mundo inteiro como a capoeira, os elementos do candomblé, o rufar dos tambores africanos e a beleza da mulata brasileira. Mas Barravento está longe de ser uma daquelas produções brasileiras que transformam nossa realidade em bibelô para turista ver.

“Sou apaixonado pelos costumes populares, mas não aceito que o povo negro sacrifique uma perspectiva em função de uma alegoria mística. Barravento é um filme contra os candomblés, contra os mitos tradicionais, contra o homem que procura na religião o apoio e a esperança”, disse Glauber, num artigo sobre a obra publicado no Diário de Notícias.

O símbolo maior do filme é a rede e não tem coisa mais bela na fita do que o balé dos homens arrastando aquela teia de linhas e anzóis cheia de peixes. É ela, a rede de pescado, o pivô de conflitos morais, financeiros e religiosos que move a narrativa de Barravento, um filme que fala sobre a necessidade de lutar, sobre a fome e sobre a submissão dos homens fracos diante da religião e dos donos do poder.

“Para mim princesa Isabel é ilusão”, disse o negro Firmino, uma espécie de alter ego do diretor baiano.

Rodado com o dinheiro de um apartamento de dois quartos, desfeito pelo produtor Rex Schindler, um judeu mulato baiano com nome de cachorro que se simpatizava com a eloquência dialética de Glauber, o filme a princípio seria dirigido por Luiz Paulino, que brigou com a produção por causa de um rabo de saia, deixando todos na mão.

Mesmo inseguro e com dois curtas apenas na bagagem Glauber aceitou o desafio de filmar o seu primeiro longa-metragem e entrou para história, sobretudo pela cena de nudismo da bela negra, Luiza Maranhão, uma das primeiras do cinema nacional, e que ele fez a contragosto, mas com todo o apoio dos deuses do cinema e das entidades do candomblé.

* Este texto foi escrito ao som de: Canções praieiras (Dorival Caymmi – 1954)

Crônicas com humor e inteligência

O inconfundível e inteligente humor de Luís Fernando Veríssimo

Todo bom cronista e colunista que se preza tem um desafeto fixo que ele possa, uma vez ou outra, usá-lo como saco de pancada. Houve um tempo em que o Judas da vez no cotidiano do jornalista e escritor, Luís Fernando Veríssimo, era o Fernando Henrique Cardoso. Um dia, no seu estilo inteligente, sofisticado e cheio de humor, ele escreveu um texto brilhante dizendo que o primeiro mandato do tucano tinha sido bem melhor que o segundo e explicou a razão.

Sem perder sua pose de príncipe esnobe, Efé Agá não fez de rogado e com a elegância que lhe é característica devolveu que, no seu caso, com relação à família Veríssimo, ele também tinha gostado mais do primeiro.

Mandou bem porque para mim, o Érico Veríssimo sempre foi mais escritor que o filho Luís Fernando Veríssimo. Cheguei a perder ônibus na parada lendo suas histórias, mas filho é filho, certo, e tem no sangue, a herança genética do pai. De modo que ele escreve bem e tem uma coisa que o pai não tinha por inteiro, que é o humor. Não sei, posso estar escrevendo bobagem, mas tenho essa assimilação. Mas estamos falando de estilos e estilo a gente não explica, aceita.

Mas confesso que eu tinha certo receio, preconceito até com relação ao Luís Fernando Veríssimo e não sei explicar o motivo. Acho que era por conta daquelas adaptações para televisão que a Globo fazia de seus textos, imagino. De qualquer forma essa barreira foi quebrada e outro dia minha afilhada me fez sentir vontade de reler algumas obras do rechonchudo jornalista e escritor.

Com o livro de português na mão, ela me mostrou como tinha se divertido lendo o conto Estragou a televisão, em que o autor mostra como a comunicação tem ficado cada vez mais difícil entre as pessoas justamente por causa da evolução da mesma a partir de um diálogo insosso entre duas pessoas diante da tevê.

Daí, eu fui até a minha estante mágica e peguei o livro no qual estava a crônica que ela me mostrou e comecei a ler já que não tinha lido ainda. Era o Histórias brasileiras de verão: as melhores crônicas da vida íntima e, assim como a minha sobrinha, nunca tinha me divertido tanto lendo. Irônico, preciso nas piadas do cotidiano e inteligente sem parecer pedante, as histórias de Veríssimo, o filho, são um sundae e pronto.

“O melhor do namoro, claro, é o ridículo”, escreve em Luta armada, onde narra os encontros e desencontros dos namoros e flertes em tempo de guerra, quando estar junto não é, necessariamente, estar apaixonado já que um deles vai desaparecer, para o bem ou para o mal, sem deixar vestígios. Em Arranjo floral Luís Fernando tira onda de Nelson Rodrigues e mostra que, em se tratando de família e relações amorosas, nem tudo é o que aparenta ser.

Também tem a história de dois amigos que vão aos sopapos por causa de uma conta de restaurante e da vovó que fica desapontada com o namorado economista da neta que usa brinco. “A senhora não ia pedir para ele explicar a situação do Brasil, vovó?”, indaga a guria ao que ela responde zangada. “Está explicada”.

Fiquei empolgado e peguei outro dele para ler da mesma série, desta vez, A eterna privação do zagueiro absoluto – As melhores crônicas de futebol, cinema e literatura. Divertida as recordações das coberturas das Copas do Mundo que realizou e o seu encanto pela inesquecível seleção brasileira de 1982, assim como o fascínio pelas coxas da Silvana Mangano e os seios da Martine Carol, quando se lembra dos tempos em que usava short e assaltava as matinês em Porto Alegre. Além claro, da adoração quase platônica que tem pela beleza da Luana Piovani e da Patrícia Pillar, do tempo em que ele não conhecia a Patrícia Poeta.

* Este texto foi escrito ao som de: Brilliant corners (Thelonious Monk – 1957)

Crônica de um suicídio anunciado

...Ele tem uma alma doente de Rimbaud...

Perdeu a fé no ser humano. Há cinco anos que, definitivamente, perdeu a fé no ser humano e desde sempre carrega um peso, uma agonia, uma dor dilacerante no peito. E tudo por causa de um coração partido, mas, mais do que um coração partido dói o desprezo gratuito, talvez por isso mesmo não acredite mais no amor e nas coisas belas da vida. “Porcaria, quem afinal inventou esse diabo do amor?!”, resmunga. Os efeitos colaterais dessa paixão não correspondida machucam sua alma doente de Rimbaud…

O que mais o entristece é a falta de respeito com o sentimento alheio, as troças entre amigos, as grosserias gratuitas com dedos em riste na cara ou o telefone batendo novamente na cara, mentiras infantis e descasos velados, o desprezo típico de quem veio de cima e se acha melhor do que o próximo, de quem se acha acima do bem e do mal. “Há aqueles que chegam às maiores alturas para cometerem as piores baixezas”.

Um dia a perguntaram quem era o sujeito em questão. Com ar de desdém, meio que dando de ombro ela respondeu: “Ah, esse cara cismou comigo é só um subalterno”. O príncipe encantado dos canalhas insiste com a soberba dos nobres: “Tem cara de doido”. Ao que ela devolve, sem pesar as palavras, já que o conhecia tão bem: “Tem mesmo!”.

O absurdo de tudo e o que não entra na sua cabeça é que ele nunca entendeu porque tamanho desprezo de alguém que ele quer tão bem e torce tanto. Sim, porque quanto mais ele demonstra o seu amor, quanto mais se importa com ela, maior é o desprezo, as grosserias, as chacotas e a indiferença. Todos os anos ele se lembra do aniversário dela e da filha, mas ela age como se ele fosse invisível, como se não estivesse lá, como se não fosse ninguém ou pior, como se fosse um nobody. “Você força amizade”, a frase dita por ela até hoje chicoteia seu orgulho. “Você força a amizade, a amizade, a amizade, força… Amizade”, ouve em seus pesadelos.

Então, pediram sua cabeça numa bandeja de prata como se ele fosse um João Batista e nem lhe deram o direito de defesa só porque era um empregadinho de nada. O acusaram de um crime que não cometeu e nem lhe deram o direito de defesa só porque ele não é do tipo que anda de braços dado com o poder. “Cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça”, lembrou-se da rainha de Alice no país das maravilhas.

O trataram como se ele fosse um naco de carne e o jogaram aos lobos e não tem um dia, não tem uma noite que ele não se lembre disso porque o rancor é o alimento de cada dia, por isso o estômago dói e a febre não cessa e esse céu cinza sobre a cabeça que não vai embora…

… Ela é sádica, esnobe e injusta, mas, linda como uma manhã renascentista, uma tarde em Paris e mesmo assim ele gosta dela o que fez seu analista desistir dele.

De modo que resolveu se afastar, desenvolvendo um estilo de vida que não precise, necessariamente, de sua existência. Qualquer dia desses, ele se mata e deixa para ela o sofrimento das sobrinhas e da mãe. Será que um dia suas sobrinhas irão perdoá-la por isso?

Talvez não, mas e daí porque egoísta e esnobe que ela é com certeza vai dar de ombros, lançando uma última troça sobre o plebeuzinho inconveniente:

– Ufa, Lili, desse a gente se livrou, né?

* Este texto foi escrito ao som de: Ágaetis Byrjun (Sigur Rós – 1999)

Videoteca Básica (07) Giants

Rock Hudson e Liz Taylor,  os Benedict no épico Assim caminha a humanidade

Ainda falando sobre Rock Hudson, acho que Giant (Assim caminha a humanidade – 1956) foi um de seus melhores desempenhos no cinema, claro, vai ficar em minha lista, sempre, O segundo rosto (1966), de John Frankenheimer, mas sua atuação como o racista e machista Jordan Benedict, ao lado da soberba Liz Taylor, simplesmente está impecável. E não só isso, não há coisa mais bela do que a imagem do ator em techinocolor e olha que ainda temos James Dean em cena, a um passo de virar lenda. Clark Glabe, Gary Cooper e William Holden queria os papéis, mas o diretor George Stevens escolheu o grandalhão e simpático Rock Hudson.

Baseado no romance de Edna Ferber, o filme é um épico com cara de novelão sobre a trajetória de três gerações de uma clássica família do Texas, um dos estados mais tradicionais e nacionalistas da América. Conta a saga dos Benedict e os seus bíblicos conflitos familiares, amorosos, disputas econômicas com os novos magnatas do petróleo, além, claro, das contundentes querelas raciais com os mexicanos, um tema que deu um toque especial à trama, impregnada de questões sociais.

Em sua biografia lançada longo apó sua morte, em 1985, vítima da AIDS, Rock Hudson lembra das filmagens desse clássico. “George Stevens era como um Deus para mim. Ele me deu todas as diretrizes antes de iniciar o filme e quase não me disse nada durante as filmagens… Ele me fez sentir rico e cheio de preconceito”, recorda o astro em seu livro de memórias.

Ao casar com a elegante, sofisticada e moderna Leslie (Liz Taylor), Jordan Benedict tem não apenas uma linda mulher – a mais bela da região -, mas uma figura orgulhosa de si, sem preconceitos, caridosa e humanista, sempre defensora dos fracos e oprimidos, apesar de suas origens abastadas. Daí o fato dela causar espanto ao olhar para os mexicanos como pessoas normais e não como bichos, ao contrário dos texanos, povo que ela acha arrogantes em suas caricaturas de homens machões e mulheres duronas.

“Vocês não passam de homens das cavernas com suas clavas discutindo sobre política”, repreende e constrange o marido, diante de seu machismo numa reunião de amigos.

Fora os problemas domésticos, o casal tem que conviver ainda com os desaforos de um ex-empregado da fazenda Reata, a imponente propriedade dos Benedict cravada no meio do nada, em pleno deserto texano, cercada de terras e horizonte por todos os lados. Ele é Jett Rink (James Dean), um jovem despeitado que deseja não apenas a riqueza de Jordan, mas também sua charmosa mulher. Um dia ele descobre petróleo no seu pequeno racho e manda a gananciosa família às favas.

“Bick, você deveria tê-lo matado há tempo! Agora ele está rico demais para ser morto”, diz um tio experiente, diante do impasse.

O que se segue a partir daí é uma narrativa espinhosa, marcada por ruidosos debates sobre o lado mais negro da condição humana e bem colocada na elegante direção de George Stevens, que abiscoitou o Oscar de melhor direção pelo filme.

Uma das produções mais bem sucedida da Warner Bros., Giants, poderoso libelo contra o racismo e as diferenças sociais, também seria o último trabalho de James Dean, que morreria poucos dias após as filmagens num acidente de carro. Não veria seu último filme nas telas, mas por tabela seria imortal. Mas não se engane porque Assim caminha a humanidade é um filme de Rock Hudson e Elizabeth Taylor, um dos mais belos casais que Hollywood já produziu.

George Stevens Jr. tem toda razão em seu discurso na abertura do DVD comemorativo dos 40 anos da fita , seu pai era um cineasta que respeitava o público.

* Este texto foi escrito ao som de: Tragic songs of life (The Louvin Brothers – 1956)

Sob o signo dos sete pecados capitais

Texto impecável e atuações marcantes, nada de modéstia aqui...

Pedro Bricio é um jovem ator que abraçou, já tem algum tempo, com unhas e dentes, a direção de peças teatrais. De 2003 para cá já foram 10 montagens sob sua batuta e, se você quer conhecer um pouco desse talentoso e jovem homem dos palcos vá conferir então, no CCBB, a peça Modéstia, que fica em cartaz no espaço até o dia 13 de maio. Fui lá conferir a pré-estreia do espetáculo, na última quinta-feira, e confesso que há muito tempo não me divertia tanto.

O texto é do argentino Rafael Spregelburd e o humor da trama lembra aquelas comédias argentinas que tanto encantaram os brasileiros nos últimos tempos no cinema. Mas tem um detalhe, o dramaturgo recheou seu enredo latino contemporâneo com um pequeno ensaio russo “tchecoviano” apresentando, assim, ao público, duas histórias completamente diferentes que se relacionam com a temática apresentada, ou seja, os fantasmas dos sete pecados capitais que assombram a nossa rotina. A inspiração do autor para as duas narrativas foi a famosa pintura do gravador holandês, Hieronymus Bosch.

Modéstia seria equivalente à soberba”, explicou o diretor Pedro Bricio, numa entrevista que fiz por e-mail para a revista Meiaum. “No espetáculo os personagens tentam ser menos existencial do que poderiam ser abdicando da sua força por algum motivo”, emenda.

E falando nos personagens, eles são tragicamente cômicos dentro dos problemas que enfrentam a partir de cotidianos diferentes. Engraçados, ridículos, inseguros e soberbos, gananciosos e egoístas, eles montam um confuso quebra-cabeça trazendo à tona os anseios de um mundo cada vez mais globalizado, mas estreito, menor inclusive, mas absurdamente distantes. Sintomas detectados tanto na obsessão quase infantil pelos vizinhos coreanos ou na real ameaça estrangeira personificada pelo antisemitismo.

“Montar esse quebra-cabeça é a aventura e o desafio para o espectador, mas um aviso: talvez faltem muitas peças, e talvez as peças sejam de quebra-cabeças diferentes”, observa o diretor, no texto que escreve no catálogo da peça.

Não tem como negar que o grande achado de Modéstia está no texto envolvente, com seu suspense divertido, mas de nada valeria todas aquelas palavras não fosse o ótimo desempenho dos quatro atores em cena, os casais Fernando Alves Pinto e Bel Garcia, Gilberto Gawronski e Isabel Cavalcanti. Versáteis, eles dão ritmo às duas histórias fazendo parecer uma só. Preste atenção na transição de uma trama para outra, quase imperceptível, tamanha a unidade.

Há quem não gostou do cenário da peça, mas foi uma das coisas que mais me tocaram, sobretudo pela leveza caótica que ali se aloja. Janelas e portas translúcidas, elementos cênicos sóbrios, figurinos corretos que destoam com a confusão dos sombrios dias em que vive aqueles quatro pecadores em cena. “O autor mostra o quanto estamos presos em comportamentos que são típicos da nossa época, como o egoísmo, a confusão com o caos contemporâneo, o preconceito com o que é estrangeiro”, observa o diretor.

Esse menino Pedro vai longe e o teatro agradece.

* Este texto foi escrito ao som de: City zen (Kevin Johansen – 2005)