Levei seis meses para ler Crime e castigo, de Dostoievski. Meu estado de espírito na época era tão deprimente, me encontrava tão triste que me arrastei por dias a fio na tragédia do estudante Raskolnikov. Talvez por identificação, mergulhado naquela angustia existencial vivida pelo personagem. Agora estou a um mês labutando na leitura do clássico O príncipe e o mendigo, de Mark Twain (1835 – 1910). Não por identificação, mas por melancolia talvez. Ando numa fase “Arthur Rimbaud”. Caminho para os capítulos finais do clássico escrito em 1882, que só conhecia de adaptações para o cinema. Nunca tinha lido nada de Twain até então. O livro é ótimo, uma leitura agradabilíssima.
Poucos autores que se propuseram a escrever temas universais se tornaram clássicos. Missão difícil tendo em vista o fato de que todos os assuntos abordados, em maior ou menor escala, acabam sendo universais. Entre os que tiveram esse sucesso está o norte-americano Twain que, seguindo o exemplo de colegas de pena como o inglês Charles Dickens (1812 – 1870), popularizou em suas tramas bem escritas, a injustiça humana em todas suas facetas e os conflitos tenebrosos entre opressores e oprimidos. O romance O príncipe e o mendigo capta em sua essência essas premissas.
A obra representou um salto na carreira literária de Twain por sua imersão no romance histórico e por trazer ambietação diferente de seus trabalhos anteriores, com histórias sempre focados no Sul dos Estados Unidos, a exemplo do grande sucesso As aventuras de Tom Sawyer (1876).
Twain, nascido Samuel Langhorne Clemens, era conhecido por ser uma amante das viagens, e foi numa dessas, em passagem pela Inglaterra que teve a ideia para o livro. O enredo apresenta um velado tom de fábula, mas a narrativa esbarra em fortes matizes realistas. O romance, embora ambientado no século 16, é extremamente atual, daí uma das características de ser uma obra universal.
Passada em Londres, narra a história de dois sujeitos que nasceram no mesmo dia e com semelhanças incríveis na aparência. Tal qual cara de um, focinho do outro. Se fossem irmãos não seriam tão idênticos. O problema é que Tom Canty era um autêntico representante do povo da sociedade de sua época. Vivia num buraco imundo e fedido chamado Offal Court, nas proximidades de Pudding Lane, como narra o autor, num cortiço aboletado de gente. “A casa (…) era pequena, deteriorada e frágil, mas estava apinhada de famílias desgraçadamente pobres”, descreve Twain. “A família de Canty ocupava um quarto no terceiro andar. A mãe e o pai tinham uma espécie de armação de cama no canto, mas para Tom, a avó e suas duas irmãs não havia restrições, tinham todo o chão para si e podiam dormir onde escolhessem”, segue.
A fome acoitava seu estômago dia e noite e para sobreviver, vivia na condição de mendigo, pedindo esmolas pelas ruas da cidade. Tarefa exercida com a maior das cautelas tendo em vista que mendigar na Inglaterra do século 16 era crime. E, se Canty chegasse em casa sem um níquel nos bolsos, era recebido a pontapés e socos pelo pai.
Já Edward Tudor era filho do herdeiro do trono do Rei Henrique VIII e ostentava uma vida cheia de conforto e luxo. Ao seu redor não faltava amor e carinho, atenção e respeito. A bajulação e a pompa faziam parte de sua rotina.
Um dia, como num passe de mágica, acontece dos dois ficarem frente a frente e o espanto é geral. Trocam de papéis e, por um acidente de ocasião, são obrigados a viver um a vida do outro. Tom é conduzido ao glamour e fausto da corte real e Edward se perde pelas ruas sujas e cheias de marginais da Londres do século 16.
A partir desse episódio surreal o que se vê é um exercício de reflexão sobre a condição humana realizado pelo autor a partir da questão da desigualdade social. Mas Twain, habilidoso que é, realiza tal tarefa sem se perder em maniqueísmos bobos ou juízos de valores. Coloca na mesma balança os dois pesos e medidas da situação vivida por ambos. Os lados bons e ruins de cada lado já que, como dizia o dândi Oscar Wilde: “cada um de nós carrega dentro de si o bem e o mal”.
A mensagem esboçada por Twain é a que contamina cada um de nós, ou seja, o ridículo hábito de julgar as pessoas pela aparência. E quem não faz isso?! E se você jura que não é do tipo que se deixa levar por tal leviandade, então que passe pela prova da “pedra”, implantada há dois mil anos atrás por Jesus. Aliás, Cristo é quase um símbolo dessa injustiça já que ninguém acreditava que aquele filho de carpinteiro nascido numa manjedoura fosse o Rei dos Reis. Ou seja, a hipocrisia e maldade humana estão o tempo todo estampados nas páginas de O príncipe e o mendigo.
Interessante como o escritor, em alguns momentos ridiculariza os dramas vividos por cada um dos personagens, abusando da ironia como no episódio em que explica a função dos “meninos das chicotadas”, infelizes criaturas encarregadas de receberem os castigos no lugar dos príncipes, quando esses faziam arte. Acreditem, mas existiam coisas como essa na Inglaterra, séculos atrás. Os brutais castigos sofridos pelos sentenciados por crimes são narrados por Twain com riqueza de detalhes. “Entre os prisioneiros estava um velho advogado, punido por ter escrito um panfleto contra um lorde da corte. Acusado de injustiça, fora punido por esse ato com a perda de suas orelhas, o pagamento de uma multa de cinco mil libras, além de ser marcado com ferro em brasa nos dois lados da face e permanecer na prisão pelo resto da vida”, escreve.
O livro é repleto de lições de moral. Uma delas, com inclinação bíblica, diz respeito à questão de nunca julgarmos os outros sem antes ter passado, ter sentido na pele, a mesma situação que o seu próximo. Quando o príncipe se depara com as injustiças, abuso de poder e desmedida violência implantadas sob a égide do governo de seu pai, entra em crise existencial. Diante do que vê, promete rever às leis abusivas criadas pelo antigo governo.
Conheço muitas pessoas que se passam por príncipes, mas que na verdade são verdadeiros “mendigos de alma”, tamanha a pobreza de espírito. Assim como conheço muitas pessoas simples com alma de príncipe pela grandeza de caráter.
Como se vê, ninguém é o que aparenta ser.