Foi Nelson Rodrigues quem me chamou atenção para o detalhe em suas crônicas. Toda vez que ele queria dá uma volta no bonde do passado, recorria à famosa e lírica passagem criada pelo autor de Em busca do tempo perdido, o francês Marcel Proust. É aquela em que um personagem de sua monumental obra morde uma madeleine e, como num processo remissivo, volta no tempo relembrando as mais ternas lembranças. E os momentos tristes também.
Bem, nunca li Marcel Proust. Até tenho em minha estante mágica os três volumes de sua clássica obra, mas essa imagem de um romantismo sem igual nunca me saiu da cabeça e sempre recorro a ela quando, tal qual o autor de O casamento, também me dá vontade de dar uma volta no bonde do tempo.
Outro dia, ao ouvir a famosa trilha do filme Carruagens de fogo, escrita pelo grego Vangelis, como num processo proustiano, voltei no tempo e me lembrei da época em que corria como se tivesse asas nos tornozelos. Não vá ri, mas já fui fundista dos 100 metros rasos. Mas calma, na escola e não fiz tão feio assim, não, abiscoitando, inclusive, algumas medalhas, mas nunca tirei o primeiro lugar. Mas e daí, não foi Jesus quem disse que os últimos serão os primeiros?!
Mas não fiquei só na trilha sonora de Vangelis, aproveitei a deixa do Canal Cult, da Net, e revi o filme também, que nem me lembrava direito de como era. Para falar a verdade, a única coisa que me lembrava, de fato, bem claro na minha mente, é da famosa cena em que um dos corredores, ao ser derrubado numa das provas, se levanta e, quase se asfixiando pelo esforço, recupera o primeiro lugar e vence a corrida. Bem que o Rubinho Barrichello poderia ver esse filme gente.
Mas acontece que, dirigido pelo britânico Hugh Hudson, a produção inglesa, vencedora de quatro Oscars, inclusive melhor filme, roteiro e trilha sonora, evidentemente, traz enredo carregado de questões interessantes a partir da trajetória de dois grandes nomes do atletismo nos anos 20: o missionário escocês Eric Lidell (Ian Charleson) e o estudante judeu inglês Harold Abraham (Ben Cross).
De origens e princípios diferentes, eles serão grandes rivais em competições domésticas, mas irão unir forças para correrem pelo país nas Olimpíadas de 1924, realizada em Paris, na França. Por amor à pátria, ambos irão colocar as diferenças de lado e é sobre esse manto de ideologias e crenças que se costura o enredo do filme de 1981, que traz uma reconstituição de época impecável. Aliás, o figurino também levou uma estatueta na grande festa do cinema mundial.
É inegável o caráter ufanista da obra, com seu nacionalismo britânico escancarado e demonização boboca dos nortes-americanos, os principais rivais dos ingleses nos jogos, mas a narrativa de Hudson toca em assuntos pertinentes e universais como a intolerância diante do diferente, tema que nunca deixou de sair da pauta do cotidiano dos seres humanos.
Sentindo-se inferiorizado, por ser judeu, Harold Abraham, então estudante da conceituada Cambridge, vê no atletismo o canal perfeito para mostrar que é igual aos seus pares. Ou melhor, que é bem diferente, já que corre como se tivesses fogos nos pés, como se contasse com a ajuda dos ventos. Seu sonho é chegar às Olimpíadas, mas antes, precisa vencer alguns obstáculos em seu caminho. Um deles é o preconceito. O outro, materializado na figura do escocês voador Lidell, missionário de fé inabalável que acredita ser o raio divino nas competições. “Quando eu estou correndo me sinto mais próximo Dele”, acredita.
Dois momentos são emblemáticos em Carruagens de fogo. Um deles é quando Lidell tem sua fé testada relutando, terminantemente, em correr no domingo, dia sagrado, segundo preceitos de sua religião. Prefere trair a pátria, mas não seus princípios religiosos e enfrenta um comitê olímpico formado por intolerantes e cínicos. Vence essa “corrida” porque, segundo ele, Deus está acima de todas as coisas.
A outra está na relação afetiva entre o judeu Abraham e seu treinador Sam Mussabini (Ian Holm), um italiano de origem árabe. Aqui, o roteiro um pouco acadêmico mostra que a briga milenar entre esses dois povos, tanto na fita, quanto na vida real, já naquele tempo, era vista como mero instrumento de intolerância dos homens insensatos no poder, como enfatiza a cena dos mestres preconceituosos de Cambridge.
Mas nada é mais bonito em Carruagens de fogo do que as imagens quase estáticas dos homens na fúria de suas passadas velozes. Gestos e esforços se misturam num intricado balé de corpos e sofrimento em favor do esporte. Quase não notamos, mas estamos diante da dor da vitória, da dor da superação. Tudo isso, claro, ao som da bela trilha de Vangelis.
* Este texto foi escrito ao som de: History: America’s greatest hits (America – 1975)