Discoteca Básica (36) Five leaves left

Espécie de Rimbaud do pop rock, Nick Drake foi um dos artistas mais talentosos e autênticos de seu tempo

Belo como um Deus Apolo e com vocação para poeta maldito, Nick Drake foi, sem sombra de dúvidas, um dos artistas mais singulares e brilhantes de seu tempo. Se tivesse vivido no século 19, seria uma espécie de Lorde Byron ou Charles Baudelaire da época. Rimbaud da música pop dos anos 60, o cantor folk britânico morreu jovem, aos 26 anos, de causas obscuras. Depressivo, há quem acredite que ele tenha cometido suicídio em novembro de 1974, após vários anos acometidos por distúrbios mentais. Mais isso não tem problema porque Deus ama os suicidas.

Suicídio ou não, o fato é que, Nick Drake é hoje um dos astros da cultura recente, mais cultuados dos últimos tempos. Renato Russo que o diga. Bem, arranho o violão e sou metido a escrever canções. Se eu pudesse e tivesse talento, queria escrever canções como a do Nick Drake, um cantor e compositor de veia melancólica e obra existencialista densa, intensa e marcante. O que mais me chama atenção em Nick Drake era a sua sensibilidade. Devoto da solidão, intimista ao extremo, esse bardo de alma torturada era de uma sinceridade perturbadora: “Eu não sinto nenhuma emoção sobre nada, eu não quero rir nem chorar, estou dormente, morto por dentro”, disse certa vez a um amigo.

Seu estilo folk era bem autêntico. Virtuoso com o violão e pianista talentoso, não tinha o comprometimento político de Bob Dylan, nem o lirismo agridoce do compatriota Cat Stevens. Mais confessional e direto, suas letras eram um espelho dilacerado de sua alma. Resta aos ouvintes catar os cacos de toda essa melancolia dilacerada. De modo que é bem difícil escolher uma obra em sua curta discografia para esta discoteca básica, porque os três trabalhos que deixou em vida são verdadeiras obras-primas, cada qual, com um estilo diferente.

Último trabalho gravado em 1972, Pink moon é um dos testamentos musicais mais tristes deixado por um artista. Duro, seco e sem floreios musicais, deixa claro desde a faixa-título, que o artista está se despedindo. “E agora nós crescemos e nós estamos em todo lugar”, canta no derradeiro solo, a outonal From the morning.

O trabalho mais, digamos, comercial dos três discos que gravou, Bryter Layter (1970) é uma sinfonia pop jazzística sofisticada, cheia de imagens líricas e arranjos celestiais. “Por favor, me dê uma segunda graça/Por favor, me dê uma segunda face/Eu caí muito baixo da primeira vez/Agora eu só sento no chão do seu jeito”, sussurra desesperado em Fly.

Mas o registro que melhor define o estilo desse bardo angustiado é o reflexivo álbum de estreia, Five leaves left (1969). Os acordes iniciais de Time has told me nos leva ao céu. “O tempo me disse/Você é um achado raro/Uma cura problemática/Para uma mente problemática”, galanteia.

Complexo, adulto e introspectivo, Five leaves left sobressai pelos arranjos de cordas lindíssimos, bem sofisticados. As fotos de encarte são soturnas, meio que signos visuais de poesia rabiscada dentro do branco e do preto da sua existência “Você não tem uma palavra para mostrar o que pode ser feito?/Você nunca ouviu falar de um caminho para encontrar o sol?/Diga-me tudo o que você pode saber/Mostre-me o que você tem que mostrar/Você não virá e falará/Se você sabe o caminho para a tristeza?”, pergunta.

Não sei se Five leaves left é o melhor disco de Nick Drake. Talvez os três discos que deixou sejam os vértices de um triângulo sentimental raro no grande oceano que é o universo pop rock, sobretudo no recorte enorme que abarca os anos 60. Mas com certeza é o álbum do artista que me deixa com a alma uns dois palmos longe do corpo.

* Este texto foi escrito ao som de: Five leaves left (Nick Drake – 1969)