Orgias gastronômicas!

O cineasta iltaliano Marco Ferreri tinha o dom da polêmica

Para o dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, cada um de nós carrega dentro de si, no mais recôndito âmago, cavernas, pântanos que não convém desenterrar. O diretor italiano Marco Ferreri provavelmente nunca ouviu falar do autor de Vestido de noiva, mas com certeza concordaria em gênero, número e degrau, com cada palavra proferida acima. Mestres da polêmica, os dois artistas sabiam chocar a sociedade do seu tempo ao escancarar as obsessões mais doentias do ser humano.

Outro dia resgatei da minha estante dois trabalhos perturbadores do cineasta italiano que não via há bastante tempo.  Na verdade nem lebrava mais de como eram as histórias destes filmes. Então, limpei a poeira da capa, botei no aparelho e deixei que essas narrativas macabras sobre a alma humana me espantassem.

Dirigidos em décadas diferentes, A comilança (1973) e Crônica de um amor louco (1981), assim como grande parte da filmografia de Ferreri, durante muito tempo foram proibidos de ser exibidos em vários países mundo afora, inclusive no Brasil. Coube à Versátil Filmes resgatar essas pérolas cults do limbo para deleite dos cinéfilos. Os dois trabalhos são de uma virulência estética e temática incríveis. Um escândalo, de fato. Confesso que fiquei angustiado depois de rever esses registros. Se você estiver numa fase ruim da vida, passe bem longe dessas duas produções. É um conselho que dou.

Em Crônica de um amor louco, o ator Ben Gazarra vive poeta maldito inspirado no beatnick Charles Bukowski

Baseado, em parte na vida e obra do escritor beatnik Charles Bukowski, Crônica de um amor louco persegue os passos perdidos de um personagem marcado pela decadência pessoal. Poeta maldito, Charles Serking (Ben Gazzara) – espécie de alte rego de Bukowski – vaga perdido pelo lado mais sujo das ruas de Los Angeles. Na sua jornada por este Walk on the wild side, ele esbarra e tropeça o tempo todo em bandidos, prostitutas, cafetões e bêbados sujos. Ou seja, a escória do mundo. “Só preciso ficar invisível às vezes. Me afundar no lixo, me perder com todos os outros. Os fracassados, os dementes e os malditos”, avisa.

Até um dia se encontrar com a garota de programa Cass (Ornella Muti). Solitária, angustiada, uma desalmada que gosta de marcar seu corpo com objetos estranhos, esse projeto de suicídio ambulante encontra afago momentâneo no mundo deprê de Serking. De longe, até parece que são feito um para o outro. A parti daquele instante, os dois passarão a viver uma paixão tórrida, cheia de curtos-circuitos, momentos obscuros que, com o tempo, irá degringolar para um desfecho trágico. É a decadência em seu estado mais puro.

Incrível como Ferreri consegui captar com primazia o submundo traçado por Bukowski sem parecer grotesco ou vulgar, embora, altamente bizarro. A passagem em que o poeta Serking enrraba sua conquista na janela do seu apartamento imundo, sob as luzes de neon, é de um lirismo niilista sufocante. Impecável na sua atuação, o ator Ben Gazzara, dono de uma voz gutural, foi astro de um filme do brasileiro Walter Hugo Khouri no início dos anos 90, onde contracena, entre outros, com Cecil Thiré, John Herbet, Vera Fischer e, olha vejam só, Ana Paula Arósio, num dos seus primeiros trabalhos de peso.

Sexo e comida, dois prazeres inseparáveis – Mas nenhum trabalho de Marco Ferreri causou maior polêmica do que sua obra-prima, A comilança, do original (La grande bouffe), uma ofensa, em todos os sentidos, aos princípios cristãos. A bizarrice norteia o enredo do começo ao fim. Na trama, quatro amigos interpretados por um quarteto de luxo (Marcello Mastroianni, Ugo Tognazzi, Phillipe Noiret e Michel Picolli), decidem se isolar do mundo numa mansão sinistra, com todo aspecto de filme de terror. Decretam comer até morrer. E o verbo comer aqui é conjugado das mais sacanas formas possíveis, se é que vocês me entendem.

Em A comilança, quatro amigos selam o bizarro pacto de comer até morrer

O pacto sinistro selado por esses homens respeitáveis da sociedade, um deles inclusive juiz, cavalheiros distintos me fez lembrar de uma fala do diretor pernambucano Cláudio Assis, no filme Amarelo Manga. É quando ele, com o copo de bebida na mão, irrompe do nada, no meio da história, para dizer, com a cara toda amarfanhada, olhando diretamente para câmera, que o ser humano se resume a duas coisas: “sexo e estômago”.

No filme de Ferreri, esses dois elementos são levados em consideração ao extremo. Aparentemente pacatos, dóceis, o quarteto fantástico aos poucos deixa suas máscaras caírem, revelando um pântano de verdades sombrias, decadentes. É bem provável que o diretor italiano tenha se inspirado no macabro O anjo exterminador, do mestre espanhol Luís Buñuel, para escrever esse roteiro. Rodado em 1962, no México, a história gira em torno de um grupo de amigos que são obrigados a ficar presos numa casa por forças sinistras. Talvez Júlio Bressane tenha recorrido as duas histórias para construir o enredo de Filme de amor, no qual três amigos suburbanos se trancam num quarto para um fim de semana marcado por orgias, e devaneios existenciais.

No filme de Ferreri, o farto bouffe é orquestrado pelo personagem Ugo (estranhamente todos os atores aparecem com seus nomes reais), um excelente gourmet responsável por preparar os mais deliciosos e sofisticados pratos. Um dos banquetes desses anárquicos do sistema é servido com a presença de prostitutas e de uma professora que, em meio ao caos moral que se instala na casa, acaba se revelando uma grande vagabunda. Ou seja, ninguém é o que aparente ser. Nem mesmo eu e você.

Aliás, a presença “inusitada” dessa ilustre representante da camada burguesa, elucida a crítica ferrenha de Ferreri ao cinismo e hipocrisia da sociedade de seu tempo. Crítica essa sacramentada com a presença do astro Marcello Mastroianni, este visto nas telonas sempre um símbolo da moral e dos bons costumes. Em A comilança, o astro italiano surgi como um autêntico canastrão pervertido. Hilária, por exemplo, a cena em que ele aparece brincando com uma de suas sobremesas deliciosas com um tapa-olho na cara.

Mastroianni comendo uma de suas sobremesas em A comilança, de Marco Ferreri

Noutra sequência, enquanto seus amigos se deliciam com um banquete suntuoso, ele enrraba seu prato preferido contra a parede. Uma cena impensável de se ver com o sempre elegante Mastroianni.

Engana-se quem encara A comilança como um soft pornô. Simplificar essa obra-prima do cinema bizarro com tal definição preconceituosa é ser limitado. O filme está longe desse rótulo clichê, se aproixmando mais de uma sinistra obra de arte, recheada com ingredientes importantes como dramas humanos, obsessões doentias, crítica ao sistema vigente e humor, bastante humor negro, diga-se de passagem. A cena em que Ugo Tognazzi aparece imitando Marlo Brando em O poderoso chefão, na pele de Don Corleone, um grande sucesso daquele ano, é impagável. Noutra sequência, talvez a mais grotesca do filme, ele empanturra-se de comida ao mesmo tempo em que é “masturbado” pela professora calipígia até a morte. Ou seja, assim como os demais colegas, o personagem é, simultaneamente, vítima dos dois prazeres inseparáveis da humanidade: o sexo e a comida. “Não se morre comendo”, chega a desabafar, em vão, um deles. “Acharam a pior forma de morrer!”, branda. Mas no filme de Ferreri, ninguém escapa ileso. Nem mesmo o público.

Dez filmes inesquecíveis!

Lembra de Alta fidelidade? Aquele filme baseado no best seller inglês escrito pelo Nick Hornby e cujo personagem Rob (John Cusack) tinha mania de conversar relacionado  lista de cinco melhores coisas sobre tudo? Então, todo mundo tem sua lista de top 5, top 10 sobre dezenas de coisas. E o legal é que, como cada cabeça é um universo, cada coração é um mundo, cada alma uma catedral, as diferenças imperam norteadas por sensações, impressões, afetividades, experiências pessoais. 

Adoro filmes, vejo basicamente um por dia e às vezes a mesma fita várias vezes. E, por uma estranha razão, os melhores filmes que assisti são antigos, clássicos. Quase sempre histórias pequenas, intimistas. Tenho preguiça dessas produções barulhentas na qual o protagonista está sempre salvando o mundo de alguma coisa. Sou meio parado no tempo, meio anacrônico mesmo e daí?! Motivado por uma amiga, listo os dez filmes da minha vida… 

Cidadão Kane (Orson Welles – 1941) – O teatro moderno brasileiro se divide antes e depois de Vestido de Noiva, do Nelson Rodrigues. O divisor de águas do cinema moderno norte-americano é Cidadão Kane, do Orson Welles, o menino prodígio de Hollywood que acabaria amaldiçoado pela sua própria genialidade. Antes desse revolucionário filme, os enredos em Hollywood eram norteados sempre por narrativa linear, com começo, meio e fim. Aqui Welles, que na época tinha apenas 25 anos (um bebê), introduziu o flashback, tramas intercaladas com subtramas, imagens distorcidas e câmeras com ângulos ousados, além de recursos técnicos inovadores que mudaram o jeito de se fazer cinema. A história também era dinamite pura, baseada na trajetória de famoso e corrupto jornalista da época. Rogério Sganzerla o idolatrava, Glauber Rocha também. 

 

Nessa divertida e mordaz crítica social Chaplin deixa-se engolir pelas engrenagens do capitalismo

Tempos modernos (Charles Chaplin – 1936) – Chaplin é daquele tipo de artista completo, cuja obra apresenta unidade singular. Ele produziu, dirigiu e protagonizou vários projetos seus. O meu preferido é Tempos Modernos. Mestre da pantomima, do humor gestual, ele cria diversas situações engraçadas, difíceis de apagar da memória. Antológica, por exemplo, a cena em que ele se enrola literalmente nas engrenagens de uma máquina, elucidando, quase que ingenuamente o esmagamento do homem pela máquina. Guardo duas cenas marcantes dessa comédia social: a passagem em que ele é confundido como o líder de uma greve ao tentar devolver uma bandeira derrubada de um caminhão (e que Woody Allen reproduziu, bem à sua maneira, em Bananas) e o final lírico, cheio de esperança, bem Charles Chaplin.

Casablanca (Michael Curtiz – 1942) – Para mim é a melhor história de amor já escrita para o cinema, melhor roteiro original sobre o tema. Mas a trama tem de tudo, suspense, ação, thriller de guerra, comédia e um final surpreendente, de tirar o fôlego… E a Ingrid Bergman está soberba, linda! A primeira vez que ela aparece em cena é deslumbrante. A película é em preto e branco, mas os olhos dela brilham. Sem falar no Rick, o herói vivido por Humphrey Bogart, um monólito por fora, mas uma manteiga derretida por dentro. Gosto do personagem porque, assim como ele, eu nunca fico com a mocinha no final… 

No clássico Casablanca os olhos de Ingrid Bergman brilham

Cantando na Chuva (Gene Kelly/Stanely Donen – 1952) – Adoro musicais. O engraçado é que quando meu irmão descobriu isso achou que eu fosse “mochinha”… Puro preconceito! Acho muito engenhoso a forma como o cinema americano unia numa mesma paleta, numa mesmo enredo, dança, música e teatro. Cantando na chuva é a síntese desses elementos, protagonizado por um dos artistas mais completos do gênero: Gene Kelly. Fred Astaire poderia ser a autoridade no assunto, mas Kelly era o melhor. Pelo menos eu acho. Além do inteligente exercício de metalinguagem, a trama contava com uma trilha sonora marcante, um sundae: “Good morning, good morning…”. 

A morte chacoalha seus ossos no drama existencial dirigido pelo mestre da alma Ingmar Bergman

O sétimo selo (Ingmar Bergman – 1956) –  O Ingmar Bergman era o cineasta da alma, bem existencial, denso e frio… Talvez porque ele fosse da Suécia… Começou a carreira no teatro, daí o fato de ter uma habilidade quase cruel na construção dos personagens, a maioria criaturas angustiadas, tristonhas. Aqui ele cria uma fábula perturbadora sobre a vida e a morte na história de um cavaleiro medieval que se vê perseguido pela personificação da mesma. O fato de a trama ser ambientada no século 12,13, acho, era mera metáfora para o diretor falar das aflições do seu tempo… A primeira vez que vi o filme, na faculdade, senti um medo mítico da morte, que chacoalhava seus ossos em meus sonhos (pesadelo?!). Mais tarde percebi que era um medo existencial, metafísico… 

 
Ben-Hur (William Wyler – 1959) – Desde pequeno adoro os épicos bíblicos. Quo Vadis (1951), Os dez mandamentos (1956), Sansão e Dalila (1949), Barrabás (1961), todos grandes filmes e com atuações magníficas. Mas quem não se emocionou com as aventuras de Judah Ben-Hur, filho de hebreus condenado à escravidão por se recusar a entregar seus irmãos. Roteiro poderoso, repleto de tensões dramáticas e com sequências inesquecíveis como a corrida de bigas. Numa época em que o máximo que se tinha de efeitos especiais era sangue a base de sopa de tomate. Difícil, por exemplo, pensar em outro protagonista senão Charlton Heston. E pensar que Burt Lancaster recusou o papel por ser ateu e Paul Newman por não querer usar aqueles charmosos saiotes. Sorte nossa…

 

Se meu apartamento falasse (Billy Wilder – 1960) – Poucos cineastas burilavam seus roteiros com esmero como Billy Wilder, um mestre em mostrar as fraquezas da alma humana. Para o velho Billy, o ser humano era um mau-caráter por natureza. Aqui, Jack Lemmon (o eterno loser) vive funcionário de uma grande empresa que ganha a confiança dos chefes alugando seu apartamento para encontros amorosos. A coisa se complica quando ele descobre que uma dessas “pombinhas” é a pessoa que ele ama (Shirley MacLaine). Decepcionado, resolve acabar com a farra pedindo a “chave” de volta. O desfecho é exemplar e o filme tem uma das declarações de amor mais sacadas que já ouvi. É quando o personagem de Lemmom convida sua paixão (ela não sabe que ele gosta dela) para jantar no apartamento e comenta: “Era como se eu fosse Robinson Crusoé em Nova York, um náufrago entre oito milhões de pessoas. Um dia, vi uma pegada na areia e era você. Puxa, como é bom jantar a dois!”. Mais singelo impossível, ainda mais em se tratando de Billy Wilder. 

A noite (Michelangelo Antonioni – 1961) – Uma vez eu entrevistei o Paulo José para uma mostra retrospectiva sobre sua carreira e ele, um eterno homem da sétima arte, lamentava o fato do “cinema não ter mais o tempo do cinema”. E é verdade. O cinema não tem mais o tempo que o cinema deveria ter. Mas os filmes do Antonioni cristalizaram essa verdade. E o cara só dirigiu obra-prima. O que mais gosto é deste. O segundo de uma trilogia sobre ciúmes, relações conjugais à deriva. (Os outros são: A aventura e O eclipse). Na história, Marcello Mastroianni encarna um intelectual vaidoso sujeito a se corromper tanto pelo lado material, quanto afetivamente.

Antonioni exorciza os demônios de conturbada relação amorosa por meio do triângulo formado por Jeanne Moreau, Mastroianni e Monica Vitti

Sentimentos colocados à prova na difícil relação com a frágil mulher (Jeanne Moreau) e um rápido flerte (Monica Vitti), consumado numa elegante festa. A narrativa do filme se resolve em 24h. O final é de um lirismo arrebatador, com o casal indo embora por entre um gramado, na aurora, depois de expurgar todos os fantasmas do casamento na noite passada. O que mais gosto dos filmes do Antonioni são suas musas, todas de uma elegância renascentista tocante!

Terra em Transe (Glauber Rocha – 1967) – Glauber Rocha era maluco, convulsivo, mas genial, como todo artista da sua estirpe tinha que ser. Dono de estilo arrebatador foi capaz de realizar filmes herméticos, chatos, possíveis de serem registrados uma única vez pelas nossas retinas. Acho que nunca mais vou ter coragem de ver A idade da Terra (1980). Mas Terra em transe é um marco do cinema político brasileiro. Assim como Deus e o diabo na Terra do Sol (1964), foi responsável por criar uma catarse reflexiva a cerca dos problemas sociais daqueles negros tempos. Delirante e tristemente atual a alegoria de uma terra imaginária na qual governantes corruptos e populistas são capazes das maiores baixezas para chegar as maiores alturas. José Lewgoy está um primor na pele do político demagogo, assim como o jornalista Paulo Martins (Jardel Filho) figura minha lista dos grandes heróis do cinema. 

Manhattan (Woody Allen – 1979) – Woody Allen é do tipo de artista que você ama ou odeia. Eu amo Woody Allen! Para mim é o mais autêntico, original e sincero dos cineastas. Tal qual Fellini, Godard, criou seu próprio universo particular nas telas, dando vazão, por meio de histórias singelas, em grande parte engraçadas, sempre retocadas por lírica melancolia. Espécie de relicário afetivo, Manhattan é uma declaração de amor ao cinema, à cidade que ele ajudou a mitificar, aos seus sonhos e desejos mais recônditos. Lindas as relações afetivas construídas por Allen tendo como pano de fundo um dos cartões postais mais famosos… 

Em Manhattan Woody Allen presta uma homenagem singela à cidade que imortalizou sua obra