Sem Paul e minha gatinha de sardas

Paul McCartney no Rio mais uma vez, show do sessentão promete

Ela estava em Nova York e eu a procurava entre os fãs do ex-beatle Paul McCartney. Talvez a Big Apple estivesse cinza como aquela tarde de novembro em São Paulo. Talvez as ruas de Manhattan estivessem frias como aquela chuva chata, incessante que caia no Estádio do Morumbi. Talvez ela estivesse ouvindo Paul McCartney num daqueles apartamentos de luxo em Nova York: “My love does it good!”.

Quando Paul subiu ao palco naquele segundo show na terra da garoa eu nem sabia que ela estava do outro lado do hemisfério. Por isso continuei procurando seu rosto insanamente na plateia. O coração apertava a cada canção, a cada balada, a cada euforia dos fãs loucos e eu com minha estrela da manhã e da noite na cabeça.

Chorei de alegria porque depois de muitos anos, pude realizar meu sonho de adolescente. Ver o show de um beatle ao vivo. Amarguei frustração durante anos por não ter ido ao show de Paul McCartney no Brasil, em 1992. Lembro que tinha uma fita guardada em minhas coisas com a inscrição “Paul in Rio”. Nem sei onde arrumei aquilo. Não tinha idade, nem dinheiro e independência. Chorei de tristeza porque naquela noite fria de novembro, no show de Paul McCartney, queria estar ao lado do meu grande amor e eu nem sabia onde ela estava.

As canções dos Beatles, as baladonas para sua eterna gatinha Linda, o carisma e a alegria desse sessentão que há séculos vem emocionando milhares de pessoas no mundo inteiro entravam pelas minhas entranhas, lavando a alma doente, o coração dormente, demente. E eu que nem sei se chegarei aos 40. Lá pelas tantas ele pega seu velho violão dos anos 60 e manda ver Yesterday. Lágrimas de nostalgia rolam pelo meu rosto.

Amanhã e depois (22 e 23) o velho Paul toca novamente no Brasil. Volta à Cidade Maravilhosa depois de muitos anos para duas apresentações históricas. Eu não estarei lá dessa vez. Talvez eu nunca mais veja um show do meu maior ídolo, talvez eu não veja mais show algum. Espero que talvez ela esteja já, seria uma sensação boa, um efeito de “Pedra de Bolonha”. Espero um dia adormecer em seus braços, nem que seja como um fantasma, um espectro da minha dor. Espero um dia ouvir uma canção dos Beatles, de Paul McCartney sussurrada em meus ouvidos por ela. Uma do Let it be ou do disco Help! “Yesterday all my troubles seen so far away/Sundelly, I’m not half the man I used to be”. Amanhã nunca se sabe.

* Este texto foi escrito ao som de: Red rose speedway e No direction home (Paul McCartney – 1973 e Bob Dylan – 2005)

Um dia com cheiro de saudade e tristeza

"Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi", essa frase do Manuel Bandeira não sai da minha cabeça...

“Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Essa frase de um poema de Manuel Bandeira não me sai da minha cabeça. Dia e noite, noite e dia… Como a minha estrela da manhã e da noite!  “E que não foi…

…Era mês de outubro. Acho que mês de outubro do ano passado. Mês do meu aniversário. Não tenho certeza de nada. Queria chamá-la para tomar um café na semana do meu aniversário… Era para ser uma coisa simples, uma comemoração simbólica ao lado de alguém que estimo tanto, alguém especial. Seria um “oi, como vai e até logo”.

Mas…

…Quantas vezes mendiguei por um “café de cantina” e sempre ouvi desculpas tolas como respostas? Como Jards Macalé cantou naquele mítico disco de 72: “Comi muita da farinha do desprezo”. Adoeci do estômago e da alma também.

Será que se eu fosse do tipo que viajasse todo ano para Europa ou Nova York ela aceitaria meus convites para almoçar? Talvez, porque Punta del Leste não é Manhattan. Buenos Aires não é Madrid. E Santiago está ano-luz de Paris.

Se eu fosse do tipo que ostentasse poder tal qual os cretinos da “cidade da esperança”, como profetizaria, erroneamente, nos anos 50, o filósofo francês André Malraux, ela conversaria comigo com ar de quem tivesse todo tempo do mundo? Era bem possível, mas dignidade é sinônimo de $$$$ para ela.

Todos os dias 15 de fevereiro têm cheiro de saudade, gosto de tristeza...

Não gosto de aniversários. Acho uma data boboca, uma comemoração estranha. Um dia comum que tentam enfeitar com plumas, paetês e lapsos de falsa ternura e admiração. Imagina só, celebrar o dia em que ficamos mais velho com festa, brigadeiro e balão.

Mas também tem o lado afetivo, lírico da coisa porque é o dia em que podemos lembrar de quem gostamos, admiramos, aquela pessoa querida que faz parte de nossa vida e que fazemos questão que ela saiba que a gente se importa com ela, que ela é importante para gente. Acontece que ela sempre fez parte da minha vida desde o primeiro dia que a vi. Eu é que nunca fiz parte do seu seleto grupo de burgueses sádicos. Ah, se pelo menos eu fosse filho de diploma, juiz ou senador, mas nem sei quem diabos sou!

“Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi… Que não foi… Que não foi…”.

Hoje é aniversário dela, da minha estrela da manhã e da noite. Pensei em dar um alô, até peguei no telefone duas vezes para discar e dizer assim: “só para lembrar que não me esqueci do seu dia! Que hoje, quinze de fevereiro, como em todos os quinzes de fevereiros de todos os anos, um novo Sol irá brilhar em meu peito…”. Mas desisti! Pensei em comemorar o seu dia com uma madeleine proustina e um “café de cantina”, mas desisti!

“Maldade então, deixar um Deus tão triste (…) esse mesmo Deus que foi morto por vocês. (…) Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda”. Maldade então deixar tão triste alguém que sempre quer o bem de quem se admira. Isso nunca entrou na minha cabeça. Nesses anos todos, ela me fez sentir a pior pessoa do mundo. Se algum dia alguma coisa me acontecer, será por causa de pessoas como ela. “Quanto você ganha para me ver sofrer? (…) Eu choro tanto, me escondo, não digo, viro um farrapo, tento suicídio, com caco de telha, caco de vidro”.

Houve um tempo em que os 15 de fevereiros como hoje me faziam feliz, enchiam meu coração de alegria e ternura. Mas hoje o dia tem gosto de saudade, cheiro de tristeza. Agora tudo é cinza, plúmbeo e pesado, da cor do vazio, posso até ouvir o chacoalhar dos ossos, o ceifeiro pode quase me alcançar e tocar minha mão…

…Amanhã, quem sabe, será um dia bom, vou brincar com as minhas sobrinhas e ter um momento de paz. Elas me aceitam e gostam de mim do jeito que sou…

Tenho febre, sinto frio, não consigo mais ouvir Coldplay… sabe o que me deixa mais triste?! É que a gente tinha tudo para sermos dois grandes amigos…

“…Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi…”.

* Esse texto foi escrito ao som de Jards Macalé (Jards Macalé – 1972) e Pérola negra (Luiz Melodia – 1973).

O tempo da inocência

O primeiro dia de aula a gente nunca esquece...

As aulas começaram. E o primeiro dia a gente nunca esquece, não é verdade. Entra ano, sai ano e a expectativa, a ansiedade, a euforia é sempre a mesma. Fui levar minha sobrinha na escola outro dia e ela estava apreensiva, nervosa, mas feliz ao mesmo tempo. Esperava rever os amigos. Pior, achava que não iria encontrar os amigos do ano passado. Teve sorte. Metade da sala só de coleguinhas já conhecidos. Voltou para casa exultante no fim do dia.

Na porta do colégio, aquela confusão de carros, mães e pais correndo para lá e para cá com materiais escolares, alunos com mochilas nas costas, cadernos nas mãos, abraços de alegria pelo reencontro. Caderno, não, agora é fichário, né?! Uma regalia que não existia no meu tempo, que ia com um caderno só e olha lá.

Ao sentir aquele clima, quase que num processo proustiano, voltei no tempo e me lembrei dos meus dias de estudantes, da época em que a obrigação escolar era uma rotina e a convivência com os professores uma aventura humanista das mais incríveis. Ou quem sabe uma estadia no inferno, dependendo da alma. Íamos para o colégio de bicicleta todos os dias. Eu, meu irmão e alguns colegas, um deles, bastante querido, já falecido.

O escritor francês Marcel Proust criou uma das imagens mais líricas da literatura para evocar suas memórias...

Saudades daqueles tempos inocentes, das brigas bobas no recreio, das brincadeiras extravagantes, do lanche na lancheira, dos amores ingênuos pela colega do lado, a adorável Camila, também a estonteante Viviane, e a cândida Luciana. Ah, sim, e até mesmo pela professora mais gata da escola. Eu odiava química, por exemplo, mas me esforçava para ir bem na matéria só pra impressionar a professora Fernanda, uma gracinha.

Também tinha a professora Etelvina, uma senhora que, de tão doce, lembrava a vovó que tínhamos em casa e era uma sumidade em história, minha disciplina favorita. De modo que eu era um dos melhores alunos do tema, por tabela, o queridinho dela.

Mas disse processo proustiano nas linhas acima e já explico. Foi o escritor francês Marcel Proust quem criou uma das imagens mais belas, líricas da literatura universal ao evocar suas memórias. É quando o melancólico personagem do épico Em busca do tempo perdido, sua monumental obra sobre o tempo e as lembranças perdidas, mordisca uma Madeleine e, num processo remissivo, volta ao passado, protagonizando as histórias que preenchem as páginas do livro.

Tenho os três volumes do romance guardado na minha instante. Não os li ainda porque se trata de um trabalho especial que deve ser lido num momento especial da minha vida. Quando poderei dizer de boca cheia: “Não dividirei o espetáculo da minha solidão com ninguém. Não dividirei o espetáculo da minha velhice com ninguém!”.

Mas de tanto ler o Nelson Rodrigues citar essa passagem em suas crônicas, era como se eu conhecesse cada vírgula do texto, cada passagem do livro de Proust.

A personagem de Mia Farrow em Simplesmente Alice, de Woody Allen, foi inspirada nas mães que iam pegar suas crianças no chique bairro de Upper East Side...

Pois bem, olhando aquele povo todo ali, com seus filhos na calçada da escola, tive um desses acessos remissivos, embalado pelos sons das crianças tagarelando, recordando de um período em que eu era feliz e não sabia. O tempo da inocência.

Vendo aquelas mães elegantes e maravilhosas, todas exalando aromas oníricos, prontas para o pecado, para o amor, me acabei recordando de um depoimento do cineasta nova-iorquino Woody Allen. Acho que naquele catatau do jornalista Eric Lax, que reúne uma série de entrevistas com o diretor de Hannah e suas irmãs e Manhattan.

Num determinado momento do livro, Allen revela que uma de suas fontes de inspiração para a construção dos personagens estava nos tipos que esbarrava pelas ruas, as criaturas humanas reais, aquelas que o circundava o tempo todo, gente de verdade, de carne e osso. A personagem de Mia Farrow em Simplesmente Alice surgiu dessas observações empíricas. Ele conta que gostava de levar ou apanhar o filho Dylan, na escola no chique bairro de Upper East Side, quando observava as mulheres com seus carrões de luxo indo pegar suas crianças na calçada. “Eu via aquelas mães de tênis e roupa de corrida, com casaco de zibelina ou mink blackglama por cima, e sempre achei incrível”, detalha.

No filme, Mia Farrow é uma mulher bem-casada com um importante e milionário homem da sociedade nova-iorquina, vivido pelo ótimo William Hurt. Um dia, do nada, ela toma um remédio homeopático de um chinês doido e fica invisível. No começo a insólita situação a preocupa, deixando-a amedrontada, mas enquanto não encontra a solução, passa a tirar proveito do imbróglio, como por exemplo, ficando à par das traições do marido, que não pode vê-la agora.

Divertido e bem diferente do resto da filmografia do diretor, o filme é uma fábula moderna sobre o amor superficial, a hipocrisia do lar, a mentira e traiçoes, mas também sobre a mágica, uma das obsessões de Woody Allen.

Bem, no bairro da escola da minha afilhada nenhuma mãe veste casaco de zebelina (seja lá o que diabos isso seja) ou mink blackglama, mas há sempre uma mulher interessante cheirando a sonho aqui ou ali. O que me fez me lembrar da “garota do bom dia” e o seu pequeno arcanjo que, assim como a minha afilhada, está na labuta escolar.

* Esse texto foi escrito ao som de: Wednesday morning, AM (Paul Simon & Garfunkel), I dig everything: The 1966 Pye singles (David Bowie) e Space Oddity (David Bowie).

A Manhattan mítica de Woody Allen

Em sua obra-prima, Manhattan, Woody Allen faz da cidade de Nova York uma personagem da trama

Não sei se vocês perceberam, mas sou um sujeito deliberadamente movido por obsessões. Beatles, Keith Richards, Billy Wilder, minhas sobrinhas, a gatinha
Ana Maria, Bob Dylan, Audrey Hepburn, Oscar Wilde, Jack Lemmon, Alfred Hitchcock, Cat Stevens. Enfim, a lista é bem extensa. Woody Allen, com seus filmes pessoas e intimistas, é uma delas.

Desprezado por alguns, amados por muitos, bem ou mal todo mundo que já sentou numa poltrona de cinema viu pelo menos um filme seu ou, na pior das hipóteses, trechos de algum trabalho com sua assinatura. Eu vi todos e posso dizer de olhos fechados: tenho um carinho enorme por cada um deles.

Mas nenhuma obra desse gênio da sétima arte me toca, emociona tanto quanto Manhattan, seu relicário sentimental e afetivo sobre a cidade que o projetou artisticamente e que ele ajudou a mitificar nas telonas do mundo inteiro. Não há como falar de Nova York e não lembrar de Woody Allen ou de algumas de suas histórias.

Uma sinfonia de imagens da Big Apple ilustra a obra-prima Manhattan

Porque tenho um carinho todo especial por esse filme não sei. O fato é que, se eu fosse para uma ilha deserta ou se me mandassem de foguete para Lua ou Marte, com certeza levaria uma cópia desse clássico dirigido em 1979.

Acho que gosto da forma como ele declara o seu amor à cidade, da maneira inteligente e sutil com que entrelaça os conflitos e anseios dos personagens pelas ruas e pontos simbólicos da grande metrópole, de como seu senso de humor sofisticado e fina ironia servem de contrapeso diante da densidade que perpassa os temas abordados despretensiosamente como o adultério, passando por amores não correspondidos, insegurança, vaidade, o medo do não reconhecimento, o desejo de afirmação tanto profissional quanto existencial.

Tudo em Manhattan funciona. Desde a exuberante trilha sonora de George Gershwin, um dos ídolos de Allen, à charmosa fotografia em preto e branco assinada por Gordon Willis. Do roteiro cativante e sensível, escrito a quatro mãos com Marshall Brickman, ao elenco formidável com a sempre elegante Diane Keaton e o ótimo Michael Murphy.

Woody Allen e a bela Mariel Hemingway: "Você é a resposta de Deus a Jó", galanteia

E tem aquele início essencialmente “Woody Alleniano”, pontuado por indecisões descritivas do diretor sobre sua cidade, seguido de uma sinfonia de imagens da Big Apple. O enredo é de uma simplicidade tocante mas, como em toda história de Allen, recheada de manias visuais e obsessões intelectuais que vão desde o diretor sueco Ingmar Bergman, passando pelo teatro universal de Shakespeare, hits de jazz e escritores como Flaubert e Nabokov, o Central Park. “Bergman é o único gênio do cinema”, diz seu personagem em dado momento da trama.

Ah, sim, sem falar das paranóias e conflitos existenciais que permeiam seus personagens, um caleidoscópio multifacetado de sua intricada personalidade.

Dirigido após o grande sucesso de público Annie Hall (Noivo neurótico, noiva nervosa) e do sucesso de crítica Interiores, aqui Woody é Isaac Davis, Ike, roteirista de televisão que aspira escrever um grande romance sobre Manhattan, como mostra os primeiros minutos indecisos da fita. Depois de amargar uma humilhação sexual ao ver sua segunda esposa (Meryl Streep) o abandonar por outra mulher, resolve namorar uma sofisticada jovem de 17 anos (Mariel Hemingway), uma garota, segundo ele, “que ainda faz tarefa”. “Sou mais velho que o pai dela”, faz troça.

A beleza do escuro na fotografia com a sensual cena do planetário, Allen e Diane Keaton são meras silhuetas

O amor entre os dois é verdadeiro e recíproco, mas ele sente que não há futuro na relação. Uma realidade cada vez mais pertinente quando ele conhece a jornalista Mary (Diane Keaton), amante de seu melhor amigo, um professor universitário também com aspirações literárias. É a partir desse triângulo amoroso confuso e cheio de nuanças sentimentais surpreendentes que Allen desenvolve uma sincera, singela e pessoal homenagem à cidade do seu coração, aqui, mas do que nunca, uma personagem do filme.

“(…) Queria fazer um filme em tela grande, mas não um filme de guerra, ou típico filme em tela grande e sim um filme íntimo, romântico”, confessou, certa vez ao jornalista e amigo Eric Lax, que recentemente lançou no Brasil o livro Conversas com Woody Allen, no qual reúne entrevistas com o cineasta realizadas desde o início da carreira. “Eu queria mostrar a cidade do jeito que a sinto”, recorda.

Extremamente pessoal mas ao mesmo tempo universal, Manhattan é cheio de diálogos sutis e momentos de delicadezas como aquele em que Ike, carregado de culpa, afaga com os dedos, o pranto da namorada Tracy, depois de dizer que está apaixonada por outra. “Você está desperdiçando um afeto verdadeiro na pessoa errada”, consola.

Amargurado, Allen lista uma série de coisas que valeriam à pena viver, apesar de tudo, entre elas Groucho Marx e as frutas decorativas de Cézanne

Não tem como não suspirar com a lírica cena do planetário, gravada no Americam Museum of Natural History, na qual Woody e Diane Keaton surgem na tela apenas como meras silhuetas. Além de ser de uma genialidade artística inenarrável, esbanja sensualidade e o próprio cineasta é o primeiro a ter consciência disso quando bota na boca de seu personagem o seguinte comentário:

– Mas você estava tão sexy. Estava ensopada pela chuva e eu estava com um impulso louco de jogá-la na superfície lunar e cometer uma perversão interestelar com você.

Liricamente erótico, mas nem um pouco vulgar.

Gosto de pelo menos duas passagens no filme. Uma é aquela em que Ike e Tracy passeiam de carruagem pelo Central Park e ele, cheio de galanteios, elogia a beleza ingênua da namorada citando passagens da Bíblia. A cena foi inspirada numa passagem do clássico Nasci para dançar, de 1936, estrelado por Jimmy Stewart:

– Você é a resposta de Deus a Jó, brinca ele.

Quer cena mais romântica?!

A outra é quando, sozinho, amargurado com o fora que ganhara de Mary, elabora uma lista das coisas que, apesar de tudo, valem a pena viver, citando, entre outras coisas, o comediante Groucho Marx, as frutas decorativas de Cézanne, a obra Educação sentimental, de Flaubert, Marlon Brando, Frank Sinatra e o rosto de Tracy, com quem acaba ficando no fim.

Na minha lista das coisas pelas quais valeriam a pena viver entraria o cineasta Billy Wilder, Yesterday, dos Beatles, com certeza, o clássico A noite, de Antonioni, minhas sobrinhas, evidentemente, os olhos cintilantes e os cabelos caídos sobre o rosto da Ana Maria Campos, minha eterna gatinha, claro, e  Manhattan, uma obra para a vida toda.

* Esse texto foi escrito ao som de: Blue train (John Coltrane), Time out (The Dave Brubeck Quartet), Strangers in the night (Frank Sinatra) e algumas composições de George Gershwin.

woody Allen perde a fé no ser humano

Aos 75 anos, Woody Allen ainda é sinônimo de elegância e sofisticação no cinema

Tem filme novo de Woody Allen na praça. Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (You will meet a tall dark stranger) não tem o mesmo brilho de obras clássicas como Manhattan ou Annie Hall (odeio o título em português Noivo neurótico, noiva nervosa), nem chega aos pés de trabalhos recentes como Match point e Scoop – O grande furo, mas é um autêntico e bom Woody Allen, com toda a elegância e ironia que um filme seu deveria ter.

Vi o longa numa sessão de quarta-feira, às 22h, no Píer 21, ali próximo ao Pontão, naquele lugar horrível cheio de burgueses metidos e patricinhas mascando chiclete dizendo o tempo todo: “Tipo assim, mó massa, né?! Mó trash, mólegal, tá entendendo!!!”. Bem, quem não estava entendendo nada, claro, era eu. Mas fazer o quê. Depois que botaram fogo no Cine Academia e o CasaPark burocratizou sua programação, o jeito era submeter à humilhações como essas. Mas o velho Woody Allen merece qualquer sacrifício.

O curioso é que a sessão estava cheia de jovens, numa faixa etária que ia de 26 a 30, no máximo. Eu, com os meus 34 anos, e com uma tosse de tuberculoso, me senti um Matusalém.

Banderas (esquerda), deseja a mulher do próximo, nesse drama sarcástico de Woody Allen

Rodado em Londres, essa comédia sarcástica adornada com leves toques de drama, esmiúça as pequenas tragédias de uma família classe média-alta londrina para falar dos anseios, curiosidades, frustrações e ambições do público feminino, um nicho, diga-se de passagem, sempre abordado de forma inteligente, não menos galanteador por Allen. Aliás, assim como o mestre Chico Buarque de Hollanda, o cineasta nova-iorquino conhece como poucos as mulheres.

Na trama, a família de Alfie (Anthony Hopkins) está passando por uma fase ruim. Tanto que ele decidiu deixar a mulher Helena, interpretada pela ótima Gemma Jones. Ela é chata, hipocondríaca, controladora e sem desconfiômetro. Pior, está velha. Com seus 70 anos, Alfie esbanja saúde e disposição. E o que é melhor, assim como seu criador, que o transforma em alter ego nessa história, é apaixonado pelas mulheres.

Casada com um escritor em crise (Josh Brolin), autor de um único sucesso literário, a filha Sally (Naomi Watts) dá uma guinada na rotina ao conseguir um novo emprego na galeria do charmoso Greg (Antonio Banderas), o estranho moreno alto do título original. Como seu casamento anda morno, ela não pensa duas vezes em se apaixonar pelo chefe mulherengo. Enquanto isso, o maridão Roy pratica voyeurismo admirando a bela vizinha Dia (Freida Pinto, revelada em Quem quer ser um milionário?), que mora do outro lado de sua janela.

Pronto, está armada a teia de intrigas que leva o espectador a um emaranhado de situações que expõe as fraquezas, medos, pecados, vaidades culpas, superstições e, sobretudo, o lado mais ridículo do ser humano. Ou seja, tudo o que você já está acostumado a ver em filme de Woody Allen, só que de uma perspectiva diferente. E é esse o grande segredo do mestre: o de reciclar suas idéias e obsessões sem se repetir. O que importa é que seu texto irônico e afiado continua intacto.

Assim como os irmãos Terry e Ian, de O sonho de Cassandra, Allen perdeu a crença no homem

Quando Roy, o escritor em crise, rouba os originais do que viria a ser um livro promissor do amigo que acabara de ficar em coma depois de grave acidente de carro, ele segue os mesmos passos sem escrúpulos dos irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Collin Farrell), de O sonho de Cassandra, obrigados a matarem um sujeito que chantagia o tio (Tom Wilkinson). Em troca, ele teria, na prática, um futuro garantido. O mesmo vale para o sedutor Greg, que não se importar de desejar a mulher do próximo (o mais velho e delicioso dos pecados) só para atisfazer seus rompantes de vaidade. Você já viu algumas coisa assim em Maridos e eposas ou Hannah e suas irmãs. E por aí vai.

Cada vez mais amargo e pessimista, Woody Allen, hoje com 75 anos, bem vividos, tem demonstrado em seus últimos trabalhos que perdeu, completamente, a fé no ser humano. Mas sem abandonar a ternura e, claro, a elegância e sofisticação. Até porque, como Allen mesmo diz na abertura da fita, citando o bardo inglês William Shakespeare, “A vida é uma história contada por um louco cheia de som e fúria, significando nada”.

Woody Allen e sua metrópoles

Acho que já assisti a Manhattan umas duzentas vezes. E toda vez que vejo tenho uma impressão diferente. Hoje (07) mesmo o filme estava dando sopa no Telecine Cult. Peguei o bonde andando e não fui até o fim da estação. Mas pelo pouco que revi, pude pescar novas impressões nessa obra-prima do Woody Allen.

Gosto da forma como ele declara o seu amor à cidade, da maneira inteligente e sutil com que entrelaça os conflitos e anseios dos personagens com a urbs, de como o seu senso de humor cáustico serve de contrapeso diante da densidade que perpassa os temas abordados que vão desde adultério, passando por amores não correspondidos, insegurança, vaidade, o medo do não reconhecimento, o desejo de afirmação tanto profissional quanto existencial.

No escurinho do planetário: sensualidade e lirismo.

Há pelo menos duas passagens brilhantes no filme: a abertura indecisa, meio gaguejante e a cena do planetário, de um lirismo sensual e visual impressionantes. E a Diane Keaton tão exubrante…

Dez filmes inesquecíveis!

Lembra de Alta fidelidade? Aquele filme baseado no best seller inglês escrito pelo Nick Hornby e cujo personagem Rob (John Cusack) tinha mania de conversar relacionado  lista de cinco melhores coisas sobre tudo? Então, todo mundo tem sua lista de top 5, top 10 sobre dezenas de coisas. E o legal é que, como cada cabeça é um universo, cada coração é um mundo, cada alma uma catedral, as diferenças imperam norteadas por sensações, impressões, afetividades, experiências pessoais. 

Adoro filmes, vejo basicamente um por dia e às vezes a mesma fita várias vezes. E, por uma estranha razão, os melhores filmes que assisti são antigos, clássicos. Quase sempre histórias pequenas, intimistas. Tenho preguiça dessas produções barulhentas na qual o protagonista está sempre salvando o mundo de alguma coisa. Sou meio parado no tempo, meio anacrônico mesmo e daí?! Motivado por uma amiga, listo os dez filmes da minha vida… 

Cidadão Kane (Orson Welles – 1941) – O teatro moderno brasileiro se divide antes e depois de Vestido de Noiva, do Nelson Rodrigues. O divisor de águas do cinema moderno norte-americano é Cidadão Kane, do Orson Welles, o menino prodígio de Hollywood que acabaria amaldiçoado pela sua própria genialidade. Antes desse revolucionário filme, os enredos em Hollywood eram norteados sempre por narrativa linear, com começo, meio e fim. Aqui Welles, que na época tinha apenas 25 anos (um bebê), introduziu o flashback, tramas intercaladas com subtramas, imagens distorcidas e câmeras com ângulos ousados, além de recursos técnicos inovadores que mudaram o jeito de se fazer cinema. A história também era dinamite pura, baseada na trajetória de famoso e corrupto jornalista da época. Rogério Sganzerla o idolatrava, Glauber Rocha também. 

 

Nessa divertida e mordaz crítica social Chaplin deixa-se engolir pelas engrenagens do capitalismo

Tempos modernos (Charles Chaplin – 1936) – Chaplin é daquele tipo de artista completo, cuja obra apresenta unidade singular. Ele produziu, dirigiu e protagonizou vários projetos seus. O meu preferido é Tempos Modernos. Mestre da pantomima, do humor gestual, ele cria diversas situações engraçadas, difíceis de apagar da memória. Antológica, por exemplo, a cena em que ele se enrola literalmente nas engrenagens de uma máquina, elucidando, quase que ingenuamente o esmagamento do homem pela máquina. Guardo duas cenas marcantes dessa comédia social: a passagem em que ele é confundido como o líder de uma greve ao tentar devolver uma bandeira derrubada de um caminhão (e que Woody Allen reproduziu, bem à sua maneira, em Bananas) e o final lírico, cheio de esperança, bem Charles Chaplin.

Casablanca (Michael Curtiz – 1942) – Para mim é a melhor história de amor já escrita para o cinema, melhor roteiro original sobre o tema. Mas a trama tem de tudo, suspense, ação, thriller de guerra, comédia e um final surpreendente, de tirar o fôlego… E a Ingrid Bergman está soberba, linda! A primeira vez que ela aparece em cena é deslumbrante. A película é em preto e branco, mas os olhos dela brilham. Sem falar no Rick, o herói vivido por Humphrey Bogart, um monólito por fora, mas uma manteiga derretida por dentro. Gosto do personagem porque, assim como ele, eu nunca fico com a mocinha no final… 

No clássico Casablanca os olhos de Ingrid Bergman brilham

Cantando na Chuva (Gene Kelly/Stanely Donen – 1952) – Adoro musicais. O engraçado é que quando meu irmão descobriu isso achou que eu fosse “mochinha”… Puro preconceito! Acho muito engenhoso a forma como o cinema americano unia numa mesma paleta, numa mesmo enredo, dança, música e teatro. Cantando na chuva é a síntese desses elementos, protagonizado por um dos artistas mais completos do gênero: Gene Kelly. Fred Astaire poderia ser a autoridade no assunto, mas Kelly era o melhor. Pelo menos eu acho. Além do inteligente exercício de metalinguagem, a trama contava com uma trilha sonora marcante, um sundae: “Good morning, good morning…”. 

A morte chacoalha seus ossos no drama existencial dirigido pelo mestre da alma Ingmar Bergman

O sétimo selo (Ingmar Bergman – 1956) –  O Ingmar Bergman era o cineasta da alma, bem existencial, denso e frio… Talvez porque ele fosse da Suécia… Começou a carreira no teatro, daí o fato de ter uma habilidade quase cruel na construção dos personagens, a maioria criaturas angustiadas, tristonhas. Aqui ele cria uma fábula perturbadora sobre a vida e a morte na história de um cavaleiro medieval que se vê perseguido pela personificação da mesma. O fato de a trama ser ambientada no século 12,13, acho, era mera metáfora para o diretor falar das aflições do seu tempo… A primeira vez que vi o filme, na faculdade, senti um medo mítico da morte, que chacoalhava seus ossos em meus sonhos (pesadelo?!). Mais tarde percebi que era um medo existencial, metafísico… 

 
Ben-Hur (William Wyler – 1959) – Desde pequeno adoro os épicos bíblicos. Quo Vadis (1951), Os dez mandamentos (1956), Sansão e Dalila (1949), Barrabás (1961), todos grandes filmes e com atuações magníficas. Mas quem não se emocionou com as aventuras de Judah Ben-Hur, filho de hebreus condenado à escravidão por se recusar a entregar seus irmãos. Roteiro poderoso, repleto de tensões dramáticas e com sequências inesquecíveis como a corrida de bigas. Numa época em que o máximo que se tinha de efeitos especiais era sangue a base de sopa de tomate. Difícil, por exemplo, pensar em outro protagonista senão Charlton Heston. E pensar que Burt Lancaster recusou o papel por ser ateu e Paul Newman por não querer usar aqueles charmosos saiotes. Sorte nossa…

 

Se meu apartamento falasse (Billy Wilder – 1960) – Poucos cineastas burilavam seus roteiros com esmero como Billy Wilder, um mestre em mostrar as fraquezas da alma humana. Para o velho Billy, o ser humano era um mau-caráter por natureza. Aqui, Jack Lemmon (o eterno loser) vive funcionário de uma grande empresa que ganha a confiança dos chefes alugando seu apartamento para encontros amorosos. A coisa se complica quando ele descobre que uma dessas “pombinhas” é a pessoa que ele ama (Shirley MacLaine). Decepcionado, resolve acabar com a farra pedindo a “chave” de volta. O desfecho é exemplar e o filme tem uma das declarações de amor mais sacadas que já ouvi. É quando o personagem de Lemmom convida sua paixão (ela não sabe que ele gosta dela) para jantar no apartamento e comenta: “Era como se eu fosse Robinson Crusoé em Nova York, um náufrago entre oito milhões de pessoas. Um dia, vi uma pegada na areia e era você. Puxa, como é bom jantar a dois!”. Mais singelo impossível, ainda mais em se tratando de Billy Wilder. 

A noite (Michelangelo Antonioni – 1961) – Uma vez eu entrevistei o Paulo José para uma mostra retrospectiva sobre sua carreira e ele, um eterno homem da sétima arte, lamentava o fato do “cinema não ter mais o tempo do cinema”. E é verdade. O cinema não tem mais o tempo que o cinema deveria ter. Mas os filmes do Antonioni cristalizaram essa verdade. E o cara só dirigiu obra-prima. O que mais gosto é deste. O segundo de uma trilogia sobre ciúmes, relações conjugais à deriva. (Os outros são: A aventura e O eclipse). Na história, Marcello Mastroianni encarna um intelectual vaidoso sujeito a se corromper tanto pelo lado material, quanto afetivamente.

Antonioni exorciza os demônios de conturbada relação amorosa por meio do triângulo formado por Jeanne Moreau, Mastroianni e Monica Vitti

Sentimentos colocados à prova na difícil relação com a frágil mulher (Jeanne Moreau) e um rápido flerte (Monica Vitti), consumado numa elegante festa. A narrativa do filme se resolve em 24h. O final é de um lirismo arrebatador, com o casal indo embora por entre um gramado, na aurora, depois de expurgar todos os fantasmas do casamento na noite passada. O que mais gosto dos filmes do Antonioni são suas musas, todas de uma elegância renascentista tocante!

Terra em Transe (Glauber Rocha – 1967) – Glauber Rocha era maluco, convulsivo, mas genial, como todo artista da sua estirpe tinha que ser. Dono de estilo arrebatador foi capaz de realizar filmes herméticos, chatos, possíveis de serem registrados uma única vez pelas nossas retinas. Acho que nunca mais vou ter coragem de ver A idade da Terra (1980). Mas Terra em transe é um marco do cinema político brasileiro. Assim como Deus e o diabo na Terra do Sol (1964), foi responsável por criar uma catarse reflexiva a cerca dos problemas sociais daqueles negros tempos. Delirante e tristemente atual a alegoria de uma terra imaginária na qual governantes corruptos e populistas são capazes das maiores baixezas para chegar as maiores alturas. José Lewgoy está um primor na pele do político demagogo, assim como o jornalista Paulo Martins (Jardel Filho) figura minha lista dos grandes heróis do cinema. 

Manhattan (Woody Allen – 1979) – Woody Allen é do tipo de artista que você ama ou odeia. Eu amo Woody Allen! Para mim é o mais autêntico, original e sincero dos cineastas. Tal qual Fellini, Godard, criou seu próprio universo particular nas telas, dando vazão, por meio de histórias singelas, em grande parte engraçadas, sempre retocadas por lírica melancolia. Espécie de relicário afetivo, Manhattan é uma declaração de amor ao cinema, à cidade que ele ajudou a mitificar, aos seus sonhos e desejos mais recônditos. Lindas as relações afetivas construídas por Allen tendo como pano de fundo um dos cartões postais mais famosos… 

Em Manhattan Woody Allen presta uma homenagem singela à cidade que imortalizou sua obra