Em sua obra-prima, Manhattan, Woody Allen faz da cidade de Nova York uma personagem da trama
Não sei se vocês perceberam, mas sou um sujeito deliberadamente movido por obsessões. Beatles, Keith Richards, Billy Wilder, minhas sobrinhas, a gatinha
Ana Maria, Bob Dylan, Audrey Hepburn, Oscar Wilde, Jack Lemmon, Alfred Hitchcock, Cat Stevens. Enfim, a lista é bem extensa. Woody Allen, com seus filmes pessoas e intimistas, é uma delas.
Desprezado por alguns, amados por muitos, bem ou mal todo mundo que já sentou numa poltrona de cinema viu pelo menos um filme seu ou, na pior das hipóteses, trechos de algum trabalho com sua assinatura. Eu vi todos e posso dizer de olhos fechados: tenho um carinho enorme por cada um deles.
Mas nenhuma obra desse gênio da sétima arte me toca, emociona tanto quanto Manhattan, seu relicário sentimental e afetivo sobre a cidade que o projetou artisticamente e que ele ajudou a mitificar nas telonas do mundo inteiro. Não há como falar de Nova York e não lembrar de Woody Allen ou de algumas de suas histórias.
Uma sinfonia de imagens da Big Apple ilustra a obra-prima Manhattan
Porque tenho um carinho todo especial por esse filme não sei. O fato é que, se eu fosse para uma ilha deserta ou se me mandassem de foguete para Lua ou Marte, com certeza levaria uma cópia desse clássico dirigido em 1979.
Acho que gosto da forma como ele declara o seu amor à cidade, da maneira inteligente e sutil com que entrelaça os conflitos e anseios dos personagens pelas ruas e pontos simbólicos da grande metrópole, de como seu senso de humor sofisticado e fina ironia servem de contrapeso diante da densidade que perpassa os temas abordados despretensiosamente como o adultério, passando por amores não correspondidos, insegurança, vaidade, o medo do não reconhecimento, o desejo de afirmação tanto profissional quanto existencial.
Tudo em Manhattan funciona. Desde a exuberante trilha sonora de George Gershwin, um dos ídolos de Allen, à charmosa fotografia em preto e branco assinada por Gordon Willis. Do roteiro cativante e sensível, escrito a quatro mãos com Marshall Brickman, ao elenco formidável com a sempre elegante Diane Keaton e o ótimo Michael Murphy.
Woody Allen e a bela Mariel Hemingway: "Você é a resposta de Deus a Jó", galanteia
E tem aquele início essencialmente “Woody Alleniano”, pontuado por indecisões descritivas do diretor sobre sua cidade, seguido de uma sinfonia de imagens da Big Apple. O enredo é de uma simplicidade tocante mas, como em toda história de Allen, recheada de manias visuais e obsessões intelectuais que vão desde o diretor sueco Ingmar Bergman, passando pelo teatro universal de Shakespeare, hits de jazz e escritores como Flaubert e Nabokov, o Central Park. “Bergman é o único gênio do cinema”, diz seu personagem em dado momento da trama.
Ah, sim, sem falar das paranóias e conflitos existenciais que permeiam seus personagens, um caleidoscópio multifacetado de sua intricada personalidade.
Dirigido após o grande sucesso de público Annie Hall (Noivo neurótico, noiva nervosa) e do sucesso de crítica Interiores, aqui Woody é Isaac Davis, Ike, roteirista de televisão que aspira escrever um grande romance sobre Manhattan, como mostra os primeiros minutos indecisos da fita. Depois de amargar uma humilhação sexual ao ver sua segunda esposa (Meryl Streep) o abandonar por outra mulher, resolve namorar uma sofisticada jovem de 17 anos (Mariel Hemingway), uma garota, segundo ele, “que ainda faz tarefa”. “Sou mais velho que o pai dela”, faz troça.
A beleza do escuro na fotografia com a sensual cena do planetário, Allen e Diane Keaton são meras silhuetas
O amor entre os dois é verdadeiro e recíproco, mas ele sente que não há futuro na relação. Uma realidade cada vez mais pertinente quando ele conhece a jornalista Mary (Diane Keaton), amante de seu melhor amigo, um professor universitário também com aspirações literárias. É a partir desse triângulo amoroso confuso e cheio de nuanças sentimentais surpreendentes que Allen desenvolve uma sincera, singela e pessoal homenagem à cidade do seu coração, aqui, mas do que nunca, uma personagem do filme.
“(…) Queria fazer um filme em tela grande, mas não um filme de guerra, ou típico filme em tela grande e sim um filme íntimo, romântico”, confessou, certa vez ao jornalista e amigo Eric Lax, que recentemente lançou no Brasil o livro Conversas com Woody Allen, no qual reúne entrevistas com o cineasta realizadas desde o início da carreira. “Eu queria mostrar a cidade do jeito que a sinto”, recorda.
Extremamente pessoal mas ao mesmo tempo universal, Manhattan é cheio de diálogos sutis e momentos de delicadezas como aquele em que Ike, carregado de culpa, afaga com os dedos, o pranto da namorada Tracy, depois de dizer que está apaixonada por outra. “Você está desperdiçando um afeto verdadeiro na pessoa errada”, consola.
Amargurado, Allen lista uma série de coisas que valeriam à pena viver, apesar de tudo, entre elas Groucho Marx e as frutas decorativas de Cézanne
Não tem como não suspirar com a lírica cena do planetário, gravada no Americam Museum of Natural History, na qual Woody e Diane Keaton surgem na tela apenas como meras silhuetas. Além de ser de uma genialidade artística inenarrável, esbanja sensualidade e o próprio cineasta é o primeiro a ter consciência disso quando bota na boca de seu personagem o seguinte comentário:
– Mas você estava tão sexy. Estava ensopada pela chuva e eu estava com um impulso louco de jogá-la na superfície lunar e cometer uma perversão interestelar com você.
Liricamente erótico, mas nem um pouco vulgar.
Gosto de pelo menos duas passagens no filme. Uma é aquela em que Ike e Tracy passeiam de carruagem pelo Central Park e ele, cheio de galanteios, elogia a beleza ingênua da namorada citando passagens da Bíblia. A cena foi inspirada numa passagem do clássico Nasci para dançar, de 1936, estrelado por Jimmy Stewart:
– Você é a resposta de Deus a Jó, brinca ele.
Quer cena mais romântica?!
A outra é quando, sozinho, amargurado com o fora que ganhara de Mary, elabora uma lista das coisas que, apesar de tudo, valem a pena viver, citando, entre outras coisas, o comediante Groucho Marx, as frutas decorativas de Cézanne, a obra Educação sentimental, de Flaubert, Marlon Brando, Frank Sinatra e o rosto de Tracy, com quem acaba ficando no fim.
Na minha lista das coisas pelas quais valeriam a pena viver entraria o cineasta Billy Wilder, Yesterday, dos Beatles, com certeza, o clássico A noite, de Antonioni, minhas sobrinhas, evidentemente, os olhos cintilantes e os cabelos caídos sobre o rosto da Ana Maria Campos, minha eterna gatinha, claro, e Manhattan, uma obra para a vida toda.
* Esse texto foi escrito ao som de: Blue train (John Coltrane), Time out (The Dave Brubeck Quartet), Strangers in the night (Frank Sinatra) e algumas composições de George Gershwin.