O mercador de Veneza de Shakespeare

Al Pacino na adaptação cinematográfica da peça

Al Pacino na adaptação cinematográfica da peça que não vi

Gozado, sempre achei que o mercador de Veneza dessa peça de William Shakespeare, escrita entre os anos de 1596 e 1598, fosse o judeu asqueroso vivo por Al Pacino no cinema numa adaptação que infelizmente eu não vi ainda. Não é. Depois que li o livro, descobri que Shylock na verdade é um injustiçado por conta – parafraseando o Renato Russo – de sua classe e sua cor e os mocinhos da trama é que são os verdadeiros vilões dessa história tragicômica que me mistura preconceito, mais especificamente, antissemitismo, sadismo, vingança e ganância, ou seja, a velha e incômoda obsessão humana pelo dinheiro.

Surreal a história de um rico cidadão de Veneza que corre o risco de perder uma libra de carne de seu corpo por não saldar uma dívida. E o grotesco exagero da situação parece proposital tendo em vista que a Inglaterra Elisabetana da época do escritor e dramaturgo nutria um desprezo colossal pelos judeus, uma herança da Idade Média, diga-se de passagem.

“Eu sou um judeu. Judeu não tem olhos? Judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, impulsos, sentimentos?”, se indigna no auge da perseguição Shylock, numa espécie de reflexão inconsciente do autor.

Mas se essa demonização do povo de Cristo era natural no distante século 16, hoje em dia, depois de tudo o que os nazistas fizeram com os judeus em tempos de guerra, não deixa de ser hediondo e descabido. Daí o tom profético do texto shakespeariano que ainda é muito encenado por aí apesar de tudo, mas a culpa não é do autor, não é verdade?

O mercador de Veneza 2O mais hilário da trama é que o mercador Antônio se endivida para ajudar um amigo que está perdido de amores por uma jovem e precisa de dinheiro para bancar o romance. Ele também não é um homem de grandes riquezas, mas aguarda ansioso, a chegada de navios seus vindos do Novo Mundo, todos abarrotados de riquezas virtuais.

Acontece que um acidente em alto mar lhe causa ruínas não só financeiras, mas, sobretudo, morais e agora sua vida corre perigo. “Eu levo o mundo como o mundo é, (…) um palco, onde cada homem tem o seu papel, e o meu é triste”, vaticina Antônio no início da trama.

Como em todo enredo de Shakespeare, não poderia faltar romance aqui, mas confesso que acho os enlaces amorosos dessa trama um tanto quanto enfadonhos. Mas interessante e reflexivo são as rugas pessoais entre Shylock e Antônio, que costumava desprezar o judeu quando ocupava um alto cargo no Mercado de Veneza.

“Ele que dê uma olhada na promissória que assinou. Tinha o hábito de me xingar de usuário, (…), tinha o hábito de emprestar dinheiro como cortesia cristã”, diz com mágoa que hoje podemos encarar como secular. “Posso usar de iscas em minhas pescarias. Se ela não alimentar nada mais, vai alimentar a minha vingança”, debocha ao ser perguntado o que fará com o naco de carne arranco do desafeto.

Confesso que achei o desfecho de O mercador de Veneza bobo, injusto, diria que até estapafúrdio. Isso porque eu estava torcendo pelo judeu Shylock, talvez por comiseração social. Mas quem sabe o próprio Shakespeare também não estava e só escreveu este final ridículo por conta das pressões de seu tempo, por causa dos fantasmas e demônios de seum tempo?

* Este texto foi escrito ao som de: Face to face (The Kinks – 1966)

Face to face

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