A poesia eterna de Vinícius de Moraes

Sempre me encantei com a capacidade do Poetinha de falar de coisas profundas de forma simples

Sempre me encantei com a capacidade do Poetinha de falar de coisas profundas de forma simples

Certa vez, num gesto de bondade intelectual, livrei da fogueira uma edição antiga de Antologias poéticas de Vinícius de Moraes. Aliás, foi assim que obtive meu primeiro livro do Poetinha. E foi uma pena porque foi ó único título da pequena biblioteca que o lunático de babar na gravata de um primo meu queimou no fundo do quintal de sua casa. E olha que o cara nem era nazista e ia longe o tempo da inquisição.

Era um exemplar surrado da José Olympio que usei bastante tempo e depois troquei por uma edição novinha em folha da Companhia das Letras. Gozado que, apesar de ter versos decorados de muitos poetas na cachola, até aquele dia, eu não era muito afeito aos rompantes poéticos. Daí, comecei a ler os clássicos, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Dylan Thomas, os malditos Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud e me apaixonei pela poesia.

Mas o universo lírico de Vinícius de Moraes sempre esteve presente em meu inconsciente por meio de letras de canções como A rosa de Hiroxima, Garota de Ipanema, Chega de saudade, A casa, São Francisco, entre várias outras. Agora, com a leitura dessa obra que virou uma espécie de livro de cabeceira, um livro de orações da alma e da vida, sinto que sua visão com relação a tudo esparramada em versos líricos está mais enraizada, entranhada, presente em meu ser. O velho amigo de sobrancelhas grossas Rubem Braga é que tinha razão quando escreveu na orelha da primeira edição dessa coletânea lá no distante ano de 1960:

“Vindo de um misticismo de fundo religioso para uma poesia nitidamente sensual que depois se muda em versos marcados por um fundo sentimento social, a obra de Vinícius tem como constante um lirismo de grande força e pureza”, escreveu o grande cronista.

Antologias PoéticasE é verdade. Sempre me encantei com a capacidade que ele tinha de falar de coisas tão profundas e complexas que estavam ao nosso redor, dia e noite, noite e dia, de forma simples, poética e verdadeira. A letra de São Francisco para mim que sou ateu, agnóstico, incrédulo, enfim, um sem fé, por exemplo, é uma oração de devoção à simplicidade. Os versos do épico poema O operário em construção é de uma realidade obtusa constrangedora.

“Mas tudo desconhecia/De sua grande missão:/Não sabia, por exemplo/Que a casa de um homem é um templo/Um templo sem religião/Como tão pouco sabia/Que a casa que ele fazia/Sendo a sua liberdade/Era a sua escravidão”, escreve quase que numa encarnação tupiniquim do poeta revolucionário russo Maiakovski.

No melancólico Poema de Natal, sentimentos de perda, ausência da finitude e esperança fragilizada se misturam numa confusão perturbadora da alma. “Assim será nossa vida:/Uma tarde sempre a esquecer/Uma estrela a se apagar na treva/Um caminho entre dois túmulos-/Por isso precisamos velar/Falar baixo, pisar leve, ver/A noite dormir em silêncio”, escreve como que dizendo que não existir é a melhor das soluções.

A alegria da música surge na brincadeira sofisticada e elegante de Trecho, onde a flauta e o violoncelo pregam peça um no outro. Ou na tristeza da sina comum de todos nós, por meio do direto poema Morte. “Ela que é na vida/A grande esperada!/A desesperada do amor fraticida/Dos homens, ai! Dos homens/Que matam a morte/Por medo da vida”, resume.

Como bem disse o poeta poetinha na angustiante Elegia desesperada: “Sede, enfim, piedoso com todos/Que tudo merece piedade/E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!”, pede. Mas se o senhor não existir?

* Este texto foi escrito ao som de: Garota de Ipanema (Nara Leão – 1986)
Nara Leão