O lado B dos Beatles era tão sensacional quanto o lado A
Não sei vocês, mas em todos os discos do fab four, sempre teve aquela música escrita por um dos integrantes da banda que não fez enorme sucesso ou não entrou para a clássica galeria de canções mais famosas dos meninos de Liverpool – o que era bem difícil de acontecer -, mas que marcaram minhas audições de adolescente apaixonado pelos Beatles.
Era sempre uma faixa cativante e que, por algum motivo bem particular, seja do ponto de vista sensorial, emotivo ou empírico, mexia com a minha cabeça. Uma emoção tão inesquecível, indelével e gostosa como a primeira vez que vi o mar ou a primeira vez que a doce Ana Maria cruzar em meu caminho. Uma sensação da qual guardo com carinho em meu relicário de lembranças para sempre.
Essas canções não eram, necessariamente, B Side dos próprios discos de estúdio da banda ou mesmo dos singles, até porque, algumas delas, às vezes faziam parte até mesmo do lado A de algum álbum, mas que se perderam na sombra do sucesso marcante daquele trabalho.
Como bom beatlemaníaco que sou, tive a paciência e o prazer de elencar os meus B Side preferidos de cada um dos treze discos de carreira dessa banda que é a mais fantástica de todos os tempos.
Espero que algumas dessas canções tenham tocado você também.
P.S. I Love you – 1963
(Please please me – Lennon/McCartney)
Os vocais da fase mais ingênua dos Beatles eram sensacionais, acho que influenciados pelos incríveis grupos negros da Motown, não sei. Escrita por Paul como se fosse uma carta para a namorada da vez, P.S. I love you tem construção melódica sofisticada, com a voz de apoio de John na segunda parte e o delicioso fraseado: “P.S. I Love you, you, you, you”. Preste atenção nas batidas contagiantes das maracas de Ringo Starr.
All I’ve got to do – 1963
(With The Beatles – Lennon/McCartney)
Escrita por John, que buscava a sonoridade de Smokey Robinson, All I’ve got to do é daquelas músicas para se ouvir agarradinho ao amor da sua vida, sobretudo, como diz a letra, se você estiver mal-intencionado. Gosto da aceleradinha que a faixa ganha a partir da segunda estrofe, o contagiante backing vocal de Paul e aquele sensual huummm da última frase cantando por um matreiro Lennon.
If I feel – 1964
(A hard day’s night – Lennon/McCartney)
Sempre achei que, por causa da melodia, If I feel fosse uma composição de Paul e talvez o crédito se resume apenas a essa parte, mas a letra é ponteada pela fina ironia de Lennon que traz versos como: “Descobri que o amor é mais do que andar de mãos dadas”, diz o cantor, que falava na época de adultério. A parte em que Paul alcança uma nota mais alta é de arrepiar os cabelos da nuca.
What you’re doing – 1964
(Beatles for sale – Lennon/McCartney)
De uma engenhosidade pop incrível para época, What you’re doing, outra da safra de Paul McCartney, traz como inovação a dupla de compositores gritando a primeira palavra de cada verso, com o baixista conduzindo o resto. Além do piano estiloso de George Martin, a faixa conta ainda com poderosas marcações de bateria, no começo e no fim, de Ringo, uma homenagem ao mestre Phil Spector. Todos os instrumentos têm participações de luxo, confira.
Tell me what you see – 1965
(Help! – Lennon/McCartney)
Discordo quando o crítico musical Tim Riley diz que, Tell me what you see seja a faixa mais fraca do disco Help! Acontece que esse álbum é bom demais, com sucessos inesquecíveis como a soberba, Yesterday. Gosto mais uma vez do exercício vocal de Lennon e McCartney cantando juntos a primeira parte e Paul conduzindo as “respostas”. E ainda tem os sensuais huuummm do final. “Nuvens grandes e negras vão passar/E se você confiar em mim eu farei o seu dia brilhar”.
I’m looking through you – 1965
(Rubber soul – Lennon/McCartney)
Apaixonei-me por uma garota que me desprezava (acho que me despreza ainda) e não olhava para mim (nunca olhou), mas através de mim. Toda vez que ouço I’m looking through you me lembro dessa garota que quebrou meu coração. E a canção tem razão de ser em minha vida quando li que o Paul a escreveu depois de se sentir negligenciado pela gatinha ruiva Jane Asher. “Foi devastador ficar sem ela. Foi quando escrevi a canção”, confessou o baixista, um fofo, não?
And your bird can sing – 1966
(Revolver – Lennon/McCartney)
John Lennon até o talo é de estranhar que o pai desprezasse um filho proeminente de forma tão grosseira. “Um horror, uma canção descartável”, disse certa vez. O fato é que a faixa é um dos B Side mais marcantes escrito pela dupla, com um riff de guitarra poderoso e letra enigmática que, segundo especialistas, seria direcionada a Paul McCartney. Será?! “Quando suas possessões começarem a te consumir/Olhe em minha direção, estarei por perto”, canta.
Getting better – 1967
(Sgt Pepper’s lonely hearts club band – Lennon/McCartney)
“Está ficando melhor o tempo todo”. O otimismo de Paul surge nesse trabalho solar como uma manhã radiante de primavera e foi exatamente nesse clima, tanto de espírito, quanto de tempo, que o esboço da faixa surgiu. Conduzida por sincopados riffs de guitarras, a música traz ainda uma parede sonora de fundo meio etérea advinda dos instrumentos indianos usados por George Harrison, como a cítara e a tambura. “Não poderia ficar pior”.
Flying – 1967
(Magical mistery tour – Lennon/McCartney/Harrison/Starkey)
Poucas vezes a expressão, “andando nas nuvens”, foi tão bem interpretada musicalmente, quanto nessa faixa de sonoridade sobrenatural. Isso se os quatros meninos de Liverpool escreveram a canção tendo isso em mente. Experimental ao extremo, a música me deixa de cabelos em pé quando ouço aqueles vocais de anjos celestiais atormentados. E pensar que Stanley Kubrick quase usou a música no clássico, 2001 – Uma odisséia no espaço…
I’m so tired – 1968
(The Beatles – White album – Disc one – Lennon/McCartney)
Arrastada, meio sonolenta, I’m so tired captura com perfeição o estado de espírito de John Lennon que andava puto da vida na Índia onde estava há três semanas, em retiro espiritual com os outros Beatles, a mulher Cynthia e amigos. Sem drogas, sem álcool, sem os seus cigarros, sem Yoko Ono e também cansado por não conseguir dormir, a angústia só aumentava. “Você sabe que eu te daria tudo que tenho por um pouco de paz de espírito”, se desespera.
Long, long, long – 1968
(The Beatles – White album – Disc two – George Harrison)
Não vou mentir para você, não, mas a primeira vez que ouvi esse lamuriento canto fúnebre de Harrison me deu um medo desgraçado, sobretudo pelo final sobrenatural, meio do além, vindo de um instrumento de sopro indiano chamado shehnai. A bateria dramática de Ringo e a voz distante de George, abafada pelo seu violão e o órgão Hammond de Paul só atenuam o clima de terror. Sinistro…
Only a northern song – 1969
(Yellow submarine – Harrison)
Na rua da minha pré-adolescência tinha uma mulher linda com suas grandes ancas, tipo aquelas das histórias de Nelson Rodrigues, e toda vez que a via ficava excitado. Estranhamente, toda vez que ouço Only a northern song, lembro dessa minha musa da rua da minha pré-adolescência. Não me pergunte o porquê, talvez por conta daqueles arranjos estranhos, meio lascivos, vai saber.
Sun king – 1969
(Abbey Road – Lennon McCartney)
Imagens bucólicas como o cantar dos grilos, uma guitarra meio latina bailando no ar e letra poliglota, com fraseados em italiano, espanhol e coisas do tipo. Não sei por que, mas Sun king me remete à cultura de países como Peru, Chile e Bolívia. Para mim, será sempre a visão dos Beatles dos povos latino-americanos e não me esqueço do personagem Galeno, em Os anos rebeldes, todo riponga, ouvindo essa música. Tudo a ver.
I’ve got a feeling – 1970
(Let it be – Lennon/McCartney)
Durante um bom tempo da minha fase de aluno do 2º grau, gostava de ouvir essa canção deitado no chão, com os ouvidos grudados ao alto-falante, antes de pegar a bike e ir para escola, só para sentir a energia contagiante e estimulante da introdução. Acho o vocal visceral de Paul um grito de convocação à batalha, à guerra. “Tenho sentido algo, um sentimento aqui dentro/Um sentimento que não posso esconder”, grita o baixista.
Este texto foi escrito ao som das respectivas faixas citadas.